Ele é produtor e diretor do programa Minha Loja de Discos, exibido pelo Canal Bis. Rodrigo atendeu a pZ direto de Londres, onde mora atualmente, e falou sobre as duas temporadas do programa, sua exploração artística e cultural das cidades por onde passa e seu apreço por esses diversos templos vinílicos ao redor do mundo
Ele é produtor e diretor do programa Minha Loja de Discos, exibido pelo Canal Bis. Rodrigo atendeu a pZ direto de Londres, onde mora atualmente, e falou sobre as duas temporadas do programa, sua exploração artística e cultural das cidades por onde passa e seu apreço por esses diversos templos vinílicos ao redor do mundo.
Como surgiu a ideia de produzir um programa como o Minha Loja de Discos?
Eu filmei uma boa quantidade de material sobre a Polysom, a fábrica de vinil de Belford Roxo (RJ), a única do Brasil. Isso aconteceu quando todos estavam evitando que a fábrica fechasse, antes dela ser reativada. Quando eu constatei que eles estavam numa crise brava, cheio de dívidas, fiquei sabendo do interesse do João Augusto, então presidente da Deckdisc e hoje um dos sócios da Polysom, em comprar e reativar a fábrica. Entrei em contato e o João veio a Londres, então eu o levei nas lojas de discos daqui que eu conhecia. Presenciamos uma garotada comprando LPs de diversas bandas, todas elas lançando seus novos trabalhos em vinil… O meu interesse, sendo sincero, foi colocar uma pilha para ele reabrir a fábrica no Brasil. Chegando em casa, conversei com a Elisa (Kriezis), que é a minha parceira no crime (risos). Já tínhamos trabalhado juntos numa série para a GNT (Londres Assim), foi então que tivemos a ideia de fazer algo sobre as lojas de discos.
Fale um pouco mais sobre você, a sua produtora (Ton Ton) e a parceria com o Canal Bis.
Eu tinha os contatos do Canal Bis porque trabalho há muitos anos para o Multishow, comentando festivais, pesquisando conteúdo etc. Hoje eu sou basicamente um documentarista, um videomaker, e a Ton Ton cresceu muito nesse sentido de produzir conteúdo próprio. A Ton Ton é uma produtora brasileira independente, então temos o benefício da cota federal de produção independente nacional, e o Canal Bis queria dar um gás em sua programação musical. Eles gostaram da ideia e foi muito legal, pois o Canal Bis realmente abriu muitas portas para diversas produtoras brasileiras e para programas relacionados com música.
O sucesso de filmes como Alta Fidelidade, a popularidade do Record Store Day e a volta do vinil no imaginário popular ajudaram a criar um interesse maior ao redor do programa?
Sim, totalmente. O Alta Fidelidade, até mesmo o Durval Discos no Brasil, uma série de livros sobre o assunto e também a própria discussão sobre a decadência desse segmento da indústria, geraram um novo fôlego e turbinaram o interesse no programa e no assunto em geral.
A primeira temporada do Minha Loja de Discos passou pelas lojas do Reino Unido, fale um pouco mais sobre ela.
A Elisa praticamente produziu tudo, pois eu trabalhava fixo na BBC. Nas minhas folgas e férias, a gente viajava para gravar nas lojas das outras cidades ou aqui por Londres mesmo. Fizemos um piloto sobre a Sister Ray, que é uma loja bacana do Soho, que surgiu junto com o movimento punk dos anos 70. Eles representam muito uma faceta da cena local que eu me interesso muito, que é sobre a influência da música caribenha, do reggae e do dub, e como tudo isso se misturou ao punk. Mas o programa que fizemos sobre a Sister Ray não tem porra nenhuma disso (risos). Mostramos umas bandas mais recentes (risos).
Ainda existem muitas lojas de discos aí na Inglaterra, certo?
Existem umas 300 lojas pelo Reino Unido. Esse número aumenta ou diminui um pouco a cada ano, pois tem loja que abre, dura apenas um ano, e depois fecha. Nessa primeira temporada, eu percebi que as lojas que duram décadas são aquelas que possuem uma relação muito forte com a comunidade ao redor de onde estão instaladas. São estabelecimentos patrocinados não monetariamente, mas culturalmente pelos músicos locais, que agem como patronos de determinadas lojas. Geralmente são lojas que vendiam os discos dos grupos desses músicos, quando totalmente independentes. Daí eles estouram e fazem questão de retribuir tudo isso à loja. A Monorail, na Escócia, começou tendo o seu estoque cedido pelas bandas locais. O mais caro pra montar uma loja é o estoque, e nesse caso em específico, o pessoal do Mogwai ajudou. O pessoal do Franz Ferdinand, por exemplo, também está totalmente conectado à Monorail e por aí vai…
A segunda temporada, que está sendo exibida atualmente, foi rodada pelos EUA. Sendo um país de proporção continental, creio que foi importante mapear o território pra traçar de maneira mais abrangente todas as diferentes culturas e cenas de locais como Chicago, New Orleans, Detroit, Mississippi, Nashville, L.A. e NYC. Como foi planejar essa nova temporada num país tão grande?
Na primeira temporada, mapeamos tudo antes, mas contamos com uma flexibilidade maior na produção, porque estávamos perto. Foi possível viajar e entrevistar uma banda, por exemplo, num dia diferente daquele em que a gente filmava, em tal cidade. Nos EUA, com aquela proporção toda e a distância, tivemos que produzir tudo com antecedência. Foi necessário ter a certeza que quando estivéssemos numa cidade, encontraríamos com todos os artistas, lojistas etc. Saímos daqui então com 70% de tudo marcado, agendado. Temos um episódio no Havaí, e eu queria muito entrevistar o Taj Mahal, que foi pra lá no início dos anos 80, fundou a Hula Blues Band e foi um músico que ajudou a trazer de volta para o blues o que o blues havia dado para a música havaiana nos anos 50. Mas como ele nem vive na principal ilha do Havaí, mas sim numa ilha menor, fomos entrevistá-lo em Nova York. Esse tipo de coisa precisou ser agendada com muita antecedência. Rodamos milhares de quilômetros e usamos todos os meios de transporte possíveis.
Nos episódios, a loja de disco acaba sendo o ponto de partida para a exploração artística e cultural das cidades. O principal papel do programa é mostrar o quão fundamental para a vida das cidades é ter a sua própria loja de disco, certo?
Exato, isso mesmo, perfeito. Algo recorrente nessa série, e que você percebe de imediato, é o impacto que essas lojas causam na região onde atuam, ajudando a desenvolver aquela vizinhança. Muitas vezes são locais deteriorados, sem atenção do poder público, e a loja movimenta a região, que teoricamente encontra-se degradada. A loja de disco traz então uma função cultural e marcante para aquela vizinhança, atrai artistas e intelectuais e, por fim, o poder público. Assim, algumas cidades e bairros vão crescendo graças às lojas de discos. Outras formas de negócio vão abrindo nas redondezas, pois trata-se de um local com aluguel barato… Isso é muito importante pra comunidade, pois toda ela necessita de uma boa livraria, um bom teatro, um bom café, um bar legal, para as pessoas se encontrarem etc. Em alguns casos, as lojas são agentes dessa gentrification, ou gentrificação como andam dizendo no Brasil, mas acabam depois sendo prejudicadas, pois tudo aumenta de preço na região, inclusive o aluguel. E para uma loja de discos sobreviver, o aluguel precisa ser barato. Essas lojas foram criadas para o povo, na verdade. Creio que o programa mostra muito essa coisa toda.
O programa sobre a Somewhere in Detroit, um dos meus favoritos, mostra muito isso que você comentou…
Pois é. A Jazz Record Mart, em Chicago, por exemplo; se você reparar as pessoas que a frequentam, vai constatar que não são pessoas de muita grana, que estão ostentando. Todos estão ali garimpando, buscando absorver alguma coisa maior, interagindo. Esse processo urbano é muito interessante. Buscamos mostrar isso, indo pela cena local, dando espaço também na série para esses artistas não muito conhecidos. Essas lojas criam esse circuito de renovação, então são essenciais também para oxigenar o ambiente além do esquema das rádios.
Das chamadas college radios americanas…
Sim, essas rádios universitárias americanas são diferentes das rádios britânicas. A Inglaterra é um país muito menor e tem uma estação que ajuda bastante as novas bandas nesse sentido, a Radio 6. Mas nos EUA é necessário sair do esquemão comercial, então é aí que entram as lojas independentes de discos e essas college radios. Se depender do esquemão e não houver essa oxigênação, ferrou, ninguém vai conhecer nada de novo.
Outra grande sacada do Minha Loja de Discos são as entrevistas com músicos locais, todos exaltando a sua relação com determinada loja. Como vocês chegaram nesses artistas?
Das mais diversas formas: através de um contato aqui na Inglaterra, do Facebook, dos selos independentes – que dominam boa parte desse mercado que as lojas estocam. Mas nunca deixamos de pegar dicas preciosas com os próprios donos das lojas, nos informando sobre os músicos que são seus clientes e tudo mais. A Aquarius Records de São Francisco, por exemplo, é uma loja especializada em black metal. Você nunca iria imaginar que São Francisco possui um intensa cena de black metal (risos). Mas então, eles tinham o contato de todo mundo do gênero no pedaço, o que foi incrível. Muitos desses músicos que entrevistamos também trabalham nas lojas. São caras que tocam duas vezes por semana e vivem também do salário da loja.
Tanto o roteiro como a edição, e as trilhas do programa, são bem legais. Como você trabalha isso com o restante da equipe?
O roteiro quem faz é a Kika Serra e seu irmão, Pedro Serra. A Kika manja muito de música e é responsável pelo Caipirinha Appreciation Society, o podcast de música brasileira mais ouvido no mundo, com milhares de seguidores. Já o Pedro Serra é DJ no Rio de Janeiro, e também conhece bastante. A edição e a trilha sonora é do Felipe David Rodrigues, que também é diretor de cinema e foi editor do Som do Vinil, do Charles Gavin. Passamos um briefing pra o Felipe e ele executa um trabalho maravilhoso, com o ritmo próprio dele, de imagens e sons. A sensibilidade dele é incrível pra isso e ele gosta muito de música psicodélica. Uma das virtudes dessa série, talvez a maior delas, é que todos os envolvidos possuem uma relação especial com música, uma relação de vida mesmo, um lance de militar pela música. Algo muito além de uma simples ambição profissional. A Elisa gosta de ressaltar que é um grande time e, sem ele, nada disso seria possível. Rola uma vibração aí (risos).
Existe o desejo, ou a possibilidade, de rodar uma temporada no Brasil, apresentando lojas e cenas daqui?
Sim, o desejo existe. Não conseguimos fazer uma temporada inteira no Brasil, a menos que sejam feitas algumas mudanças no formato do programa. Dentro do formato atual, o que a gente quer fazer é com algumas lojas do Brasil e outras da América Latina. No Brasil, seria muito bacana fazer com lojas como a Baratos Afins, por exemplo, que além de loja é também um selo essencial. Já gravei entrevistas com o Luiz Calanca, sobre discos de vinil, isso há uns oito anos. A Colômbia tem uma cena musical maravilhosa e o México também, então seria muito bacana fazer isso. Tem muitos outros lugares que ainda não exploramos e que dariam programas sensacionais, como Canadá, França, Alemanha, Japão, Austrália, África do Sul e Mali. No Mali, inclusive, existe uma grande loja especializada somente em fitas K-7. A música do Mali também é muito essencial, principalmente para a música do Ocidente. A teoria de que o blues veio originalmente de lá também é bastante provável. Na África do Sul tem ainda o lance de que a ideia para o filme do Rodriguez saiu de dentro de uma loja de discos. Enfim, temos fôlego para uma temporada internacional que abrangeria o Brasil, mas focar uma temporada inteira no Brasil eu acho complicado, pelo menos no momento. Pode ser que daqui algum tempo pintem outras lojas no Brasil, o que é natural acontecer, e daí aconteça também mais esse tipo de relação entre lojas, cenas musicais e regiões que mostramos no programa. Sei que além de São Paulo e do Rio de Janeiro, existem boas lojas em Porto Alegre e Recife, por exemplo. No Rio, que eu conheço melhor, o forte são os sebos, as lojas de discos usados. Os lançamentos em vinil estão sendo comercializados mais pelas livrarias e grandes redes, como Fnac, Livraria Cultura, Saraiva e outras. Infelizmente essas grandes lojas não criam uma relação evidente com a cena musical local, ao contrário da Baratos Afins, por exemplo.
Pra encerrar: É verdade então que o vinil matou a indústria do MP3?
Cara, eu não sei, mas esse slogan é muito bom, sem dúvida (risos). A Elisa nesse ponto talvez tenha uma visão menos romântica e mais justa que a minha; talvez eu tenha uma visão mais passional. Ela diz que uma coisa anda junto da outra hoje em dia, ou seja, quem mais compra vinis é quem também pesquisa mais, e se beneficia do MP3 como ferramenta. Ou seja, as pessoas ouvem o MP3 nos dispositivos móveis na rua, mas, em diferentes circunstâncias, escutam também o LP em casa. Daí o hábito dos discos de vinil de hoje em dia virem acompanhados de um código para o download do arquivo digital. Como portabilidade, o MP3 é válido mesmo com uma qualidade sonora inferior, assim como era o walkman, ou o radinho de pilha. Agora em casa, se você quiser se aprofundar, o vinil é imbatível. A arte requer tempo. Não dá pra absorver arte, ou música, fazendo dez coisas ao mesmo tempo, é preciso parar e ouvir. Música não é ginástica aeróbica, não é multitasking. Música é a forma de arte mais revolucionária que a humanidade já conheceu. Falo isso sem medo, porque a música está na vanguarda até mesmo da tecnologia. A música tem uma ligação muito objetiva com os meios de comunicação, dos mais primitivos aos mais contemporâneos. Como forma de arte e usando a tecnologia do seu tempo, ela está sempre muito na frente. Mais uma vez é a música que está dizendo para o ser humano: “Bicho, para e ouve, para e escuta!”. No Brasil da atualidade, isso é mais que essencial…
sou compositor, de verdade, como bach, beethoven e companhia, tenho ouvido falar em volta do vinil, mas parece que nos vinis novos a gravação é inteiramente digital, afinal , existe ainda como reconstituir o processo analógico? existe como gravar sem cair na roubada do digital?