Quadrophenia, o show
Nassau Veterans Memorial Coliseum
Uniondale, Nova York (21/2/2013)
O show do The Who é uma homenagem ao seu mais emblemático álbum e também ao antigo estilo de vida de muitos de seus fãs.
O Nassau Coliseum é uma das arenas sagradas do rock mundial. O famoso estádio de hóquei no gelo serviu de palco para shows históricos. Foi o local escolhido na costa leste dos EUA pelo Pink Floyd, para apresentar seu show The Wall, em 1980. O grupo britânico gravou lá também seu disco/vídeo Delicate Sound of Thunder. Foi no Nassau Coliseum que Frank Zappa fez seu último show nos EUA e foi lá também que o Black Sabbath e o Blue Öyster Cult registraram em vídeo a turbulenta Black And Blue Tour. Bowie, Genesis e Queen também gravaram alguns de seus shows nessa gigantesca arena em Long Island.
Cerca de 16 mil fãs enfrentaram neve e uma noite gelada do inverno norte-americano para comparecer em peso ao Nassau Coliseum para conferir o novo show do The Who. O grupo, por sua vez, continuou apostando na nostalgia ao executar na íntegra seu trabalho de 1973. A diferença é que hoje eles estão amparados pela tecnologia, como Pete Townshend, o regente da coisa toda, descreveu durante o show: “É realmente incrível o fato de hoje ser possível executar este álbum na íntegra, coisa que não foi possível na época”.
Hoje o palco do The Who é um pequeno primor. São quatro telões de alta definição que vão contando a complexa trama existencial de Quadrophenia junto da banda. A experiência é completa: música altíssima, textos e imagens de impacto. Imagens tanto de Jimmy, o herói fracassado do conto de Townshend, como da própria história do mundo: guerras, o Who devastando muitos palcos ao longo de sua carreira, ascensão e morte de ícones da cultura pop como Elvis Presley e Marilyn Monroe, John F. Kennedy e Martin Luther King, misturados a Lady Di, Woodstock e a queda das torres gêmeas. É um conteúdo pesado, que cria uma sensação curiosa no expectador, um misto de gratidão em ter vivido pelo menos parte daquilo tudo e de frustração pelo rumo tomado pela humanidade.
Além de Pete Townshend e Roger Daltrey, outros oito músicos acompanhantes fazem Quadrophenia acontecer ao vivo. Dentre eles, estão o baixista Pino Palladino, o baterista Zak Starkey e o guitarrista/vocalista Simon Townshend, irmão de Pete.
A apresentação começou com o disco Quadrophenia, executado na sequência original. “I Am the Sea” começa nos alto-falantes, enquanto a banda adentra o palco escuro. No telão, cenas do gelado mar de Brighton. “The Real Me” surgiu, não com o ímpeto do disco, mas sim lenta, arrastada, burocrática, quase decepcionante. Estaria o Who apenas aquecendo os motores? Roger Daltrey parecia cansado, tanto na performance física como vocal. Pino Palladino é um excelente músico de estúdio, mas ao vivo falta pegada. Pino não empolgou executando as partes de Entwistle em “The Real Me”.
Pra sorte de todos, o The Who virou o jogo na instrumental “Quadrophenia”. Executada impecavelmente, e com a ajuda dos telões, a dramaticidade da canção ajustou as emoções de todos os presentes. Outros destaques dessa primeira parte de Quadrophenia foram “The Punk and the Godfather”, “The Dirty Jobs”, com um surpreendente vocal de Simon Townshend e “Is It in My Head?”
Em “5:15” o improviso rolou solto, dando espaço para um solo de baixo de John Entwistle no telão, enquanto Zak Starkey, mais conhecido como “o filho de Ringo Starr” o acompanha na bateria. Foi também em “5:15” que Townshend fez, pela primeira vez na noite, seu popular gesto de girar seu braço direito. O furor e o barulho que isso gerou na plateia foi algo praticamente inexplicável – parece que todos estavam ali esperando ele fazer exatamente aquilo. Essa postura de alguns fãs até hoje deixa o guitarrista irritado. Townshend odeia ser previsível e não gosta que as pessoas se intimidem mais com esse tipo de coisa do que com a sua música. Tanto é que num dos shows seguintes a este, o guitarrista perdeu a cabeça e xingou uma garotinha de sete anos de idade, que, nas costas de seu pai, mostrava um cartaz escrito: “Quebre a guitarra, Pete!”. Townshend depois se desculpou, mas se irritou com o fato do pai poder estar usando a criança para conseguir um de seus desejos.
Voltando ao show, mais um “dueto do além” surgiu em “Bell Boy”, com Keith Moon cantando e levando todo mundo às gargalhadas com sua performance divertida e espontânea. O fato dos temas centrais de Quadrophenia serem baseados nos quatro integrantes originais até ameniza os duvidosos “duetos do além”, aparentemente uma tendência do show business atual, onde músicos mortos “tocam” com os que continuam vivos. Quando o Who executa “Love, Reign o’er Me”, a última de Quadrophenia, você já está completamente rendido. Daltrey busca uma força sobre-humana para chegar aos tons originais e Townshend executa com perfeição uma de suas mais tocantes composições.
Musicalmente, o show Quadrophenia And More agrada a qualquer tipo de fã do grupo. Desde aquele mais exigente e iniciado na obra do conjunto, que sabe de cor as letras de Quadrophenia, até o mais casual, acostumado, por exemplo, às três faixas que aparecem no seriado C.S.I. e que fazem parte do “More” do título da tour: “Who Are You”, “Baba O’Riley” e “Won’t Get Fooled Again”. Nos Estados Unidos, pode parecer até infame, mas o grupo ganhou uma espécie de sobrevida após suas canções aparecerem no popular seriado e a banda ter tocado inclusive no intervalo do Super Bowl de 2010. O final do show segue o formato greatest hits, com “Pinball Wizard” e “Behind Blue Eyes”. A surpresa foi a última canção da noite, a acústica “Tea & Theatre”, do subestimado Endless Wire, até agora o último disco de estúdio do grupo, lançado em 2006. O show termina apenas com Townshend e Daltrey no palco. Pete, no violão, dá uma risada típica de canto de boca para Roger, que retribui com uma interpretação quase emocionante. São dois sobreviventes do rock mais selvagem dos anos 1960. Deixaram o palco abraçados, ovacionados.
Quadrophenia, sem dúvidas, o melhor álbum do The Who até hoje.