A trajetória da imponente banda do progressivo brasileiro
O ouvinte e o crítico de rock normalmente concordam ao menos em uma coisa: o desejo de ir logo categorizando bandas, músicos e artistas sob rótulos pré-estabelecidos. Hoje, através do prisma da história, raramente um de nós resiste à tentação de decretar, com propriedade, que A Barca do Sol foi um representante brasileiro do rock progressivo; sem deixar de mencionar, claro, o fortíssimo elemento folk.
Mas, em meados da década de 70, essa forma de simplificar as coisas não era tão evidente ao se ouvir o som de grupos como esse. Na verdade, a banda carioca produzia uma música desprendida das referências, que acabou por representar então, a partir de elementos já consagrados décadas antes, uma das versões do que se fazia de vanguarda no período.
Em 1976, logo após o lançamento do segundo LP, Durante o Verão, os integrantes respondiam ao Jornal de Música a respeito dessa liberdade criativa, em uma espécie de entrevista-manifesto. Nas palavras do violonista, violista e cantor Muri Costa, a Barca não tinha “nem linha nem estilo”. Ele explicava: “A nossa linha é exatamente não ter linha nenhuma. Acho que a música brasileira está sufocada entre o rock e o samba. São duas formas. Se a tua música cabe na forma, toca no rádio, faz sucesso, acontece o diabo. Se não cabe, ela não presta. Nós não somos um conjunto de rock, nem um conjunto de samba. Nós somos um conjunto de música.”
De fato, eles vinham trabalhando muito para abrir “no braço” espaços nas emissoras de rádio. Naquele momento, o auge da carreira do grupo, os músicos se revezavam em visitas a todas as emissoras de rádio das capitais carioca e paulista, conseguindo apenas que fossem inseridas músicas eventualmente na programação da Eldorado nas duas cidades, além da rádio Ipanema, do Rio.
A jornada do grupo, que se prestava a fazer uma música sem compromisso com os padrões midiáticos, havia começado no Rio de Janeiro em 1973, como conta Leonardo Nahoum em sua Enciclopédia do Rock Progressivo, após um período como banda de apoio do cantor Peri Reis. Antes, porém, Muri e seu irmão, o baterista Marcelo Costa, além do violonista e cantor Nando Carneiro, já formavam um trio com o nome A Barca do Sol, título de uma das músicas do grupo. Em um curso de música erudita em Curitiba, os três caíram nas graças de Egberto Gismonti, que estava dando aulas por ali e ofereceu bolsas de estudo a cada um deles.
Em 1974, A Barca do Sol era formada por Muri, Marcelo, Nando, Jaques “Jaquinho” Morelenbaum (violoncelo e voz), Marcelo Stull (baixo), Beto Rezende (guitarra, violão, viola e percussão), Rui Motta (bateria) e Marcelo Bernardes (flauta). Com o apadrinhamento mais que especial de Gismonti e um contrato com a gravadora Continental, eles gravaram o primeiro LP, chamado simplesmente A Barca do Sol. Lançado ainda naquele ano, o álbum já mostra, de início, os belos ornamentos da melodia e dos arranjos em uma cativante sinergia com as letras, em parte compostas pelo poeta Geraldo Carneiro, irmão de Nando e expoente da hoje histórica Geração Marginal, também conhecida como Geração Mimeógrafo, dados os formatos de divulgação dos trabalhos desses artistas.
Como mídia, aliás, não só a música da Barca serviu de veículo para os poetas daquele movimento: em suas apresentações, o grupo incluía também leituras de poemas dos “marginais”, como o próprio Geraldo, além de Cacaso e João Carlos Pádua – este, assim como Carneiro, é letrista de algumas canções dos barqueiros, incluindo a música que deu nome ao grupo e outras três no primeiro disco.
A predominância de instrumentos acústicos e toda a bagagem trazida da música erudita são marcantes nesse primeiro LP. O erudito aparece desde as melodias bastante elaboradas e por vezes incomuns, assim como na instrumentação que incluía violoncelo, violas (de orquestra), flautas e arranjos vocais. As composições e arranjos, intrincados, conferiram aquele caráter “progressivo” ao grupo, logo de cara. E a mistura com as letras ousadas trazia aquele caráter experimental reconhecido no trabalho do grupo. Egberto, além de produzir o álbum, toca sintetizador em duas faixas.
Pouco depois da gravação de A Barca do Sol, o músico inglês Ritchie entrou para a banda como flautista. Ele permaneceu por um curto período e saiu em 1975, indo integrar o Vímana, com Lulu Santos e Lobão – os três, mais tarde, atingiriam sucesso em suas carreiras solo.
Para a gravação do segundo álbum, em 1976, Alain Pierre assumiu o contrabaixo, no lugar de Marcos Stull, e o flautista David Ganc veio preencher a vaga que havia sido de Marcelo Bernardes e Ritchie. Durante o Verão saiu naquele ano trazendo uma mudança mais significativa que as trocas na formação: a ausência de Egberto Gismonti na produção, que foi pelo menos, em parte, compensada pelo trabalho do parceiro de composição Geraldo Carneiro, o que trouxe mais intensidade às interpretações e mais fervor aos arranjos, embora agora talvez menos sofisticados. Na verdade, há mais incursões roqueiras em Durante o Verão do que no disco de estreia, mesmo que todas as características folk e eruditas estejam intactas. É um álbum mais facilmente identificado como rock progressivo, fato tornado evidente em “Os Pilares da Cultura” e na parte instrumental de “Belladonna, Lady of the Rocks”, com um solo de guitarra feroz. Com exceção da doce balada instrumental “Karen” e de “O Banquete”, versada por João Carlos Pádua, todas as faixas contêm letras escritas por Geraldo Carneiro, que se consolidava definitivamente como um integrante extra.
A crítica especializada morreu de amores pelo álbum. O jornalista Aloysio Reys, no Jornal de Música, fez referência ao “cardápio” simulado no encarte (outra colaboração de Geraldo) e ao “Banquete” proposto na música citada para exaltar as qualidades do álbum a ser “devorado”: “Quando abrir a porta do quarto, você pode sentir o estômago vazio, mas vai ter a certeza de que ouviu um excelente LP”. Na entrevista para a mesma publicação, Nando Carneiro exaltava a unidade do grupo: “Quando você ouvir uma música d’A Barca, pode ter a certeza de que ela é o resultado do trabalho conjunto de sete cabeças. Nós somos um conjunto sem líder, porque é assim que dá certo”.
Durante todo esse período, além de compor, gravar e fazer o “trabalho de formiguinha” na divulgação dos discos, a Barca fazia shows, é claro; e, de forma nada surpreendente, sendo explorados por empresários. Muri declarou, sem papas na língua: “Primeiro foi o Jorge Élis. Quando nós lançamos o primeiro LP, ele prometeu tudo o que você pode imaginar para a gente. Logo no primeiro show, a nossa esperança foi pra cucuia. O teatro lotou. Eram 700 pessoas que pagaram 20 pratas pela meia e 30 pela inteira. Sabe quanto sobrou para o conjunto? Menos de 1.700 cruzeiros. Depois de três noites com casa cheia, nós quase ficamos devendo ao empresário. Em uma resenha sobre os shows desse período, no MAM, no Rio de Janeiro, a cronista Ana Maria Bahiana ressaltava a qualidade da apresentação, a ousadia, a originalidade e a evolução do comportamento dos músicos no palco, todos eles muito mais soltos e confiantes. Mas ela fazia ressalvas quanto a um certo excesso de confiança: “(…) a barca resolveu complicar demais o seu som. E aí, muitas e muitas vezes, a peteca caiu. Não é nada fácil sustentar a harmonia toda de um show quando ele é picotado por longas e nem sempre bem conectadas ou bem conduzidas passagens instrumentais. É preciso um fôlego e uma experiência muito maiores do que os que a jovem Barca possui”. Mas, após justificar que em temas menos intrincados (na opinião da escriba, é claro), o grupo se sai muito melhor e arranca os mais entusiásticos aplausos da plateia, ela louva as qualidades da banda, citando o violoncelo “diabólico” de Jaquinho e a bateria de Marcelo Costa.
O próximo álbum realizado, já em 1978 e ainda pela Continental, não foi oficialmente um disco da Barca, embora na prática ele o seja: Corra o Risco é o LP de estreia da cantora-revelação Olivia Byington, tendo A Barca do Sol como banda parceira, mais do que banda de apoio. Um marco na discografia brasileira dos anos 70, Corra o Risco trouxe um repertório em boa parte composto pelos integrantes da Barca com Geraldo Carneiro, que produziu e também colaborou com letras para músicas de Astor Piazzolla, de John Neshling, de Egberto Gismonti e da própria cantora. Olivia ainda incluiu nesse disco músicas que a Barca havia lançado também no álbum de estreia: “Lady Jane”, Brilho da Noite” e “Fantasma da Ópera”.
Após a saída de Jaques Morelenbaum e o rompimento com a gravadora Continental, a Barca gravou para o selo independente Verão Produções Artísticas um terceiro LP, Pirata. Mais regional que os anteriores, Pirata é um álbum de belíssimas canções por trás da aparência de “maldito” que lhe rendem o título e a bela ilustração de capa feita por Tejo Cornelsen. O álbum traz também traços daquela MPB vanguardista que estava nascendo.
Com a separação do grupo em 1981, vários dos integrantes seguiram com carreiras musicais de prestígio, como são os casos de Muri Costa e de Nando Carneiro. Este, importante violonista, lançou álbuns pelo selo Carmo, de Egberto Gismonti. Mas o que seguiu com mais prestígio entre todos eles foi Jaques Morelenbaum, que durante anos foi o arranjador de Tom Jobim e de Caetano Veloso, tornando-se, a partir daí, um dos principais arranjadores do Brasil, e um dos mais requisitados.
As influências da Barca no rock progressivo brasileiro após a existência da banda é nítida. O grupo carioca Quaterna Réquiem, que alcançou certa projeção na década de 90, é um exemplo importante, com seus elementos folk e eruditos nas composições e arranjos. Os mineiros do Cartoon, na ativa desde 1995, também representam uma continuação do legado, com uma musicalidade ousada e músicas imprevisíveis, eles fazem música sem concessões, bem ao espírito d’A Barca do Sol. Em outro estilo, os paulistanos do Pedra trazem algumas das mesmas referências de MPB/folk setentista.
O mais importante é que, quem ouviu A Barca do Sol, nunca quis parar de navegar.
Texto originalmente publicado na pZ 53.
Shou Beto! Sempre bom recordar.
Abçs meu amigo
Ótima banda 😉