O que Cobham fez ao lado de Tommy Bolin em Spectrum serviu de exemplo para uma série de pesos pesados do estilo
Em 1968 o tecladista Jan Hammer desembarcava em Boston, USA, chegando da distante e hoje extinta Tchecoslováquia. Logo ele se graduou na Berklee e passou um ano inteiro tocando com Sarah Vaughan. Por volta de 1970, Jan estava buscando novas aventuras, se mudou então para a parte baixa de Manhattan e lá travou contato intenso com a famosa cena jazz novaiorquina. Fez amizade com o flautista Jeremy Steig, que havia recém chegado do Colorado, onde fez muitas jams e gravações, uma delas ao lado de um guitarrista ainda adolescente chamado Tommy Bolin. Hammer ouviu os tapes e ficou impressionado com a guitarra do rapaz. Hammer estava integrando nessa época a Mahavishnu Orchestra, que tinha Billy Cobham como baterista. Cobham por sua vez também já conhecia aquele jovem guitarrista do Colorado… Durante um festival, a então banda do baterista (chamada Dreams) tocou ao lado do Zephyr, grupo o qual Bolin fazia parte.
Cobham e Hammer ficaram com o nome do garoto na cabeça e o destino tratou de confabular o primeiro encontro desse trio, em solo sagrado, no Electric Ladyland Studio, na NYC do início de 1971. Todos estavam escalados para as sessões do novo trabalho de Jeremy Steig.
Bolin perambulava pelo Electric Ladyland desde setembro de 1970, pois estava gravando o álbum Going Back to Colorado da banda que fazia parte, o Zephyr. No estúdio, que havia pertencido a Jimi Hendrix, Bolin conheceu inúmeros músicos de jazz e adorava acompanhá-los, mesmo sem saber ler partituras. Seu excelente ouvido, e sua habilidade em improvisar com pegada, agradava os jazzistas, então estava tudo em casa, além do mais, o garoto estava habituado com standards do jazz e com jams em clubes noturnos. As sessões de Jeremy Steig agradaram em cheio Hammer, e principalmente Cobham, que “conversava” espontaneamente com Bolin através da música. Ficaram loucos para fazer algo juntos, mas os compromissos da Mahavishnu impediram qualquer projeto naquele instante; Hammer e Cobham caíram na estrada com John McLaughlin e Bolin voltou para o Colorado. Por lá montou um grupo chamado Energy, que mesclava rock com jazz.
Tudo permaneceu calmo por mais dois anos, até que Cobham saiu da Mahavishnu e decidiu gravar seu primeiro disco solo. Para os teclados chamou Jan Hammer; para o baixo vieram Lee Sklar e Ron Carter, Joe Farrell cuidou dos sopros e Ray Barretto das congas. Para a guitarra, Cobham ligou imediatamente para o Colorado e escalou Tommy Bolin… Nascia então uma parceria que durou apenas um disco, mas que mudou para sempre a trajetória da fusão do rock com o jazz.
Billy Cobham nasceu no Panamá, em 1944, e cresceu no bairro do Harlem, em New York, cercado de música por todos os lados. Seu pai era pianista e com apenas oito anos de idade ele já ganhava uns trocos se apresentando ao lado do pai. Estudou teoria musical e bateria no famoso High School of Music and Art de NY, com vários gênios do jazz, e chegou até a prestar o serviço militar, onde atuou também como percussionista. Um ano depois foi membro da banda de Miles Davis, com quem gravou quatro álbuns, entre eles o excepcional Tribute to Jack Johnson. Depois de três discos com a Mahavishnu Orchestra, Cobham achou que era hora de mudar. Decidiu partir como solista dali por diante, pois queria criar algo mais acessível e digerível; algo menos complexo que pudesse de certa maneira atingir mais pessoas.
Spectrum foi gravado também no Electric Ladyland, durante apenas três dias de maio de 1973. O que se ouve no disco foi quase totalmente registrado ao vivo em estúdio, num único take. Tommy Bolin só não gravou um tema, “Le Lis”, gravada pelo guitarrista John Tropea. Spectrum é de uma estonteante riqueza de ritmos, algo então inédito nos discos de rock. As levadas e viradas desconcertantes de Cobham são a espinha dorsal do trabalho, que é permeado também pelos teclados espertos de Hammer e pela guitarra sempre agressiva de Bolin.
O disco foi lançado em outubro de 1973 e foi um tremendo sucesso de público e crítica. As vendas impressionaram o baterista, mas a maior surpresa aconteceu por parte dos músicos, tanto do rock como do jazz. A fusão de jazz com rock era ainda uma deliciosa novidade para o mainstream. Os jovens que consumiam discos de rock adoraram a novidade, e tanto o jazz como o funk eram parte do novo universo musical dessa garotada.
A excelente repercussão de Spectrum impulsionou a carreira de Tommy Bolin. Logo ele foi substituir Domenic Troiano e Joe Walsh no James Gang, e anos depois substituiu Ritchie Blackmore no Deep Purple, além de ter lançado dois discos como solista: Teaser (com o amigo Jan Hammer e pitadas de fusion) e Private Eyes. Infelizmente uma overdose levou o jovem guitarrista em dezembro de 1976.
O que Cobham fez ao lado de Tommy Bolin em Spectrum serviu de exemplo para uma série de pesos pesados do estilo. A partir de então, era o sonho de todo jazzista lançar um disco repleto de grooves e com um guitarrista de rock pesado dando o molho ideal, resultando em vendas milionárias. Essa parecia mesmo ser a receita infalível dos tempos dourados da cena fusion da metade dos anos 70. Alphonse Mouzon, ex-baterista do Weather Report, foi um que tentou recriar a fórmula milagrosa de Cobham, chamando o próprio Tommy Bolin para gravar seu álbum Mind Transplant, em 1975. O resultado foi acima da média, mas sem o impacto certeiro de Spectrum.
Falando em impacto, foi após ouvir Spectrum que Jeff Beck resolveu cair de cabeça em sua fase jazz-rock de álbuns como Blow By Blow e Wired. Beck convocou Jan Hammer para lhe acompanhar nessa fase e gravou também um disco ao vivo com ele: Jeff Beck with the Jan Hammer Group Live. Beck foi talvez o sujeito “do rock” que se deu melhor na onda fusion que assolou os anos 70, e foi também o cara que estourou como precursor do lance, apesar de Billy Cobham e Tommy Bolin terem feito a mesma fusão alguns anos antes do guitarrista inglês.
Jan Hammer comentou que sempre ficou muito confortável com a situação, tendo tocado tanto com Beck como com Cobham e Bolin: “O fato de Jeff Beck ter feito muito sucesso nessa praia nunca me incomodou, pelo contrário, eu fiquei muito feliz que alguém o fez. Comercialmente falando, Beck era muito mais atraente, pois criou uma sólida base com o Yardbirds e com o Jeff Beck Group… Você sabe, ele foi parte da sagrada trinca de guitarristas que saíram do Yardbirds: Clapton, Beck e Page. Obviamente estava mais fácil pra ele colher os louros da fusão do rock com o jazz na metade dos anos 70, e ele fez isso da melhor maneira possível, sempre ouvindo tudo do jeito correto. Ele ouvia Cobham e também me ouvia, aliás ele é o primeiro a admitir isso… Beck depois colocou tudo isso em sua própria carreira, fazendo tudo soar extremamente particular, já que ele tem um timbre e um vocabulário único.”
Quanto Tommy Bolin, seu último show na Terra foi abrindo justamente um show de Jeff Beck.
Coisas do destino…
Artigo originalmente publicado na pZ 33, um especial sobre a cena fusion dos anos 70