Bowie, Iggy e a prolífica safra de 1977
A primeira metade da década dos excessos havia elevado e reduzido um de seus mais expressivos talentos. Elevado ao status de rockstar, Bowie simultaneamente era reduzido praticamente a um farrrapo humano, arrasado pelas drogas e pela vida desregrada. Quando se mandou para Los Angeles, Bowie era apenas mais um entre as centenas de magnatas junkies do pedaço. Almas perdidas, isoladas em seu próprio mundo.
Seduzido pela música negra da América, o Thin White Duke – como o próprio se denominava na época – rompia ralações com seu manager Tony DeFries e com sua agência – a poderosa Mainman.
A chegada de Bowie na cidade dos anjos, em 1975, foi digna de um longa-metragem sensacionalista norte-americano. A Mainman soltava boatos dizendo que Bowie não passava de um astro queimado, arruinado pela cocaína e prestes a tentar o suicídio. Bastou para jornalistas de todo o país soltarem rumores, afirmando que Bowie estava agora envolvido com bruxaria, exorcismos, pentagramas e teologia nazista.
Com Young Americans, disco e música, nas listas de álbuns mais vendidos e canções mais executadas, parceria com Lennon (“Fame”) e quilos de rumores sensacionalistas a seu respeito, Bowie aportava em L.A. chamando a atenção até do mais careta yankee.
Um residente de Los Angeles que também prestava muita atenção nos passos do astro britânico era Iggy Pop, ex-vocalista dos Stooges e titular absoluto do clube de almas perdidas da cidade.
Iggy guardava mágoa ainda de sua demissão da MainMan, dois anos antes. DeFries nunca escondeu seu descontentamento com o excessivo abuso químico de Iggy e seus Stooges e colocou todos no olho da rua. Para Iggy, sua banda era apenas mais uma vítima da estratégia sacana de Bowie e Defries, assim com o Mott The Hoople ou Lou Reed, sugados e depois descartados, o que colaborava para a ascensão cada vez mais meteórica de Bowie.
Aqueles anos foram terríveis para Iggy. Era comum vê-lo cambaleando pelas sarjetas de Hollywood ao lado de prostitutas, travestis e traficantes da pesada. Foi parar na cadeia e só saiu porque Ray Manzarek (ex-Doors) pagou sua fiança e quis montar um projeto ao seu lado.
Iggy andava ainda mais insano nessa época, o que foi demais para o ex-integrante do Doors que colocou tal projeto na gaveta. O ex-vocalista dos Stooges chegou a se auto-internar no Instituto Psiquiátrico da Universidade de Los Angeles (UCLA), onde foi muito falado que seu único visitante era David Bowie.
Temporadas numa clínica de reabilitação para drogados em San Diego fazia parte da rotina de Iggy, que sozinho e sem grana tentava a todo custo montar um novo grupo ao lado do guitarrista James Williamson (seu companheiro da última encarnação dos Stooges) e dos irmãos Hunt e Tony Sales. O grupo chegou até a escolher um nome – The Users – no entanto, toda a indústria fonográfica estava cansada de dar chances a Iggy. Ninguém confiava mais no cara. Para os homens de negócio das gravadoras, o Iguana não passava de um pop-star maldito, em franca decadência musical e mental. Prova disso foi o álbum “Kill City”, registrado nessa época ao lado de Williamsom, e recusado por todos os selos da cidade. “Kill City” só veria a luz do dia alguns bons anos depois.
Ironicamente, foi a caminho de um show de Bowie que Iggy passou por maus bocados. Por volta de 1975, Iggy costumava andar de vestido pelas quebradas de Los Angeles. Para o concerto de Bowie, Iggy colocou seu melhor vestido e comprou flores para dar de presente a Bowie. No estacionamento do ginásio onde rolaria o show, três surfistas encrencaram com Iggy e o esmurraram feio. Iggy continuava sem grana, viciado em heroína, e agora sem os dentes da frente e com o rosto todo costurado.
Vendo a situação do amigo, Freddy Sessler comentou com Bowie sobre o deplorável estado de Iggy. Bowie mandou recado pelo amigo em comum: “Fale para Iggy me ligar, quero muito trabalhar com ele”.
Iggy não tinha mais nada na vida, mas tinha orgulho. Deu uma de difícil e num primeiro momento não entrou em contato.
Num belo dia, Iggy perambulava pela cidade quando uma limusine se aproximou. O vidro negro baixou e era Bowie: “Hei! Iggy! Venha cá ouvir meu novo álbum!” Dentro do luxuoso automóvel, Iggy ouvia em primeira mão Station To Station, a nova gravação de Bowie. Armaram de gravar algo juntos em breve, mas pelo lado de Iggy rolava um certo desconforto pelo fato de Bowie estar se dando muito bem na América e ele não. Começaram a se encontrar em hotéis e em bastidores dos locais onde Bowie tocava. A reaproximação foi lenta e gradual.
Não demorou muito para Bowie insistir em compor, produzir e gravar algumas canções para Iggy. Os dois então resolveram entrar em um estúdio para confeccionar uma demo tape, com Bowie tocando quase todos os instrumentos. Apesar de alguns desentendimentos, sendo o mais crítico deles uma reclamação (por parte de Bowie) pelo fato de Iggy estar imitando Mick Jagger, tudo foi bem amador e produtivo. Dessa sessão surgiram sons como “Turn Blue”, “Sell Your Love” e “Drink To Me”.
Tudo começou a ser mais sério quando Iggy aceitou o convite de Bowie: correr o país com a crew da tour de Station To Station.
“Segui-os de carro por toda a América, vendo David trabalhar todas as noites. Foi o começo do aprendizado das minhas técnicas de autopreservação. Toda merda que sei, que é tomar conta de mim mesmo, aprendi basicamente viajando com Bowie na tour de Station To Station. David me ajudou, restaurando minha auto-confiança. Nos conhecíamos há muito tempo e ele estava muito preocupado com minha falta de trabalho e fiquei muito feliz de confiar nele, que é muito leal com seus amigos.”
Iggy Pop
The Beauty And The Beast
O adolescente David Jones devorava a literatura beat de Jack Kerouac. Os estudiosos da carreira de Bowie garantem que desde sua adolescência ele buscava uma amizade com um amigo selvagem norte-americano, assim como na obra de Kerouac. Iggy seria esse parceiro de aventuras.
A primeira aventura de nossos heróis foi na estrada, na tour de Station To Station, bem no clima de On The Road, de Kerouac.
Em junho de 1976, com o fim da digressão, Bowie e Iggy estavam acabados pelas drogas e tudo que menos queriam era voltar para a vida depravada de L.A. Pegaram o avião e se mandaram de férias para um estúdio em Chateau d’Herouville, 12 milhas ao norte de Paris, para gravarem um álbum em parceria.
Bowie escreveu algumas canções, tocou vários instrumentos, dirigiu a performance vocal de Iggy e sugeriu os temas das letras.
Não deve ser nada fácil trabalhar com David Bowie. Sua rotina workaholic e sua busca pela perfeição são famosas no meio artístico. Iggy por exemplo penou bastante nas mãos de Bowie: “Um bom exemplo da megalomania de Bowie foi quando eu estava trabalhando na letra de Funtime e ele disse: A letra está legal mais não cante como um cara do rock! Cante como Mae West!” Tal insistência de Bowie deu nova cara ao trabalho vocal de Iggy, que agora berrava menos e se concentrava mais. O timbre mais grave era outro diferencial na voz do ex-punk, entoando algo mais cinematográfico, ameaçador e gay.
“Bowie tem um padrão de trabalho bastante utilizado em sua carreira. Se ele tem o desejo de adentrar uma área musical de trabalho completamente nova, ele primeiro experimenta com trabalhos paralelos ou em discos de outras pessoas. Isso funciona para ele provar o sabor desse novo gênero e ganhar experiência suficiente para depois aplicar em sua própria obra. Creio que David trabalhou comigo exatamente em busca disso”.
Iggy Pop
Em “Sister Midnight” a parceria Bowie/Iggy tinha um aliado especial, o guitarrista Carlos Alomar, membro oficial da banda de Bowie e dono de um estilo livre e peculiar. “Dum Dum Boys” era um perfil de quanto retrógrados eram os ex-companheiros de Iggy no Stooges e “Nightclubbing” funcionou como um hino de brigada anti Studio 54. Algo como uma “No Fun” dos novos tempos da disco, mais densa e sinistra.
Nesse meio tempo as férias acabam, com Bowie se recusando a voltar para a América e indo para a Suíça com Iggy e sua assistente pessoal, Corinne Schwab. Lá começa a fazer terapia e a pensar nos próximos passos. Um deles é ir morar em Berlim, outro é terminar o álbum com Iggy e um terceiro, e mais ambicioso, é começar a produzir o sucessor de Station To Station.
A fase Berlim começou na França
“Eu estava no fim das minhas forças. Pensei em todas as saídas possíveis, inclusive o suicídio”. David Bowie
Para gerar seu próximo álbum, Bowie convocou Brian Eno e traçau com o ex-Roxy Music o panorama da obra – um lado rock e um lado ambient – choque na música pop! Tony Visconti continuou imprescindível com sempre na produção, deixando Bowie e Eno boquiabertos com sua nova aquisição, o dispositivo Eventide Harmonizer, uma espécie de pré-software de efeitos sonoros, que segundo Visconti “fodia com a textura dos tempos musicais”, definição que a dupla adorou.
Para o lado rock, Bowie escalou Iggy para os backing vocals, Ricky Gardiner (um músico escocês que tinha tocado no Beggars Opera) para a guitarra, Roy Young para o piano e a mesma backing band de Station To Station: Dennis Davis na bateria, George Murray no baixo e Carlos Alomar também na guitarra.
Toda a trupe, mais Iggy, partiu para Chateau d’Herouville na França, onde Bowie já tinha gravado o álbum Pin-Ups e estava mais recentemente trabalhando com Iggy. Visconti também ficava completamente à vontade do Chateau – naquele mesmo estúdio produziu Tanx, do T.Rex, e o próprio Pin-Ups de Bowie.
Nem tudo eram flores na França: Bowie contrai uma intoxicação através de um queijo envenenado, Visconti reclama do cardápio e os fantasmas de Frederic Chopin e George Sand insistem em tirar Eno da cama no meio da noite.
Apesar da má sorte inicial, o entrosamento da banda impressionou Visconti: “Eles entenderam perfeitamente que estávamos ali para fazer um lance diferente. Dennis é um batera estranho, totalmente anti-convencional. Musicalmente, Alomar pode ir para qualquer lugar e Gardiner é sólido como uma rocha. A seção rítmica é de NY e LA, o pianista vinha da Inglaterra via Hamburgo e Eno vinha de uma galáxia desconhecida. Eu vim do Brooklyn e Bowie de Brixton, então essa não era uma banda de garotos da vizinhança”.
Os primeiros sete dias das gravações de Low foram dedicados as demos das faixas instrumentais do lado A, todas elas usadas na mixagem final. Três dias foram reservados para os overdubs de guitarra de Alomar e Gardiner. Já a terceira e muito especial semana, foi dedicada aos sintetizadores de Brian Eno. Como anfitrião da festa estava Bowie: triste, desolado, um pouco perdido, porém encantado com a ousadia daquelas sessões. Não se sentindo a vontade para soltar a voz e muito menos para escrever letras quilométricas como a de “Young Americans”, Bowie preferiu apostar no lado melódico e harmônico das 11 composições do álbum, seis delas instrumentais.
Em outubro de 1976, Bowie, Iggy e Corinne, deslocam-se para um modesto prédio localizado em cima de uma oficina mecânica, em Schöneberg, um distrito pobre da Berlim oriental, completamente tomado por imigrantes. O objetivo principal era abandonar o vício de cocaína e de drogas mais pesadas e poder andar em total anonimato pelas ruas e clubes noturnos. Bowie teria também de finalizar e mixar Low, deixando tudo pronto para o lançamento que abalaria o ano que estava por vir – 1977. Só lembrando: The Idiot também estava inacabado.
“Em L.A. as pessoas me tratavam como Ziggy.Você pode fazer coisas boas com drogas mas depois vem o grande declínio. Um amigo me colocou na frente de um espelho e disse: ‘estou saindo da sua vida porque você não vale o esforço’. As vezes você não percebe o quanto afundou até que alguém jogue isso na sua cara. Depois daquela humilhação tranquei todos meus personagens dentro de um armário”. David Bowie (1978)
O estúdio Hansa By The Wall de Berlim foi escolhido como o novo quartel general da dupla Bowie/Iggy. Ali seriam finalizados Low e The Idiot, assim como registrados os próximos álbuns – Lust For Life e Heroes.
O ‘idiota’, a estréia solo de Iggy, acabou sendo atrasada em alguns meses, pois Bowie queria que Tony Visconti cuidasse da mixagem. Incrível como Bowie conseguia ao mesmo tempo cuidar de seu novo álbum de estúdio e da carreira solo do amigo norte-americano. Seu prestígio internacional garantiu até um contrato para Iggy, também pela RCA. Seriam três álbuns, com opção de renovação caso as vendas fossem satisfatórias.
Em janeiro de 1977, Bowie completou 30 anos de idade e lançou Low, motivo de espanto de crítica e de público.
O novo álbum, que quase recebeu o nome de ‘New Music: Night And Day’, não recriava as glórias do passado bem sucedido de Bowie. O disco era uma pílula amarga, de efeito colateral ainda desconhecido.
Alguns fãs mais ortodoxos raramente ouviam o lado B do disco, capitaneado pelas melancólicas linhas sintetizadas de Eno. A crítica também não topou de imediato com as instrumentais da segunda metade de Low – taxaram o material de pretensioso ao extremo.
Realmente não é nada fácil levar dialeto javanês (“Weeping Wall”), búlgaro (“Warszawa”) e proto-electronica germânica para o mainstream numa só tacada. Azar dos executivos da RCA que arrancavam seus poucos fios de cabelo temendo as pobres vendas pela América. Um executivo chegou a oferecer uma mansão para Bowie na Filadélfia caso ele resolvesse gravar uma espécie de Young Americans parte II. Sorte nossa que Bowie sempre esteve na vanguarda do pop.
O cúmulo foi a recusa da RCA em lançar Low na véspera do natal de 1976, alegando que ninguém daria um disco esquisito como aquele de presente. Na América, muitos fãs boicotavam o novo trabalho, acusando Bowie de estar apenas querendo não comprar briga com o emergente movimento punk.
“A falta de letras em Low reflete a dificuldade que eu estava tendo com as palavras. Resolvi criar uma nova linguagem musical para minha nova vida. Berlim é uma cidade feita de grades para pessoas desiludidas se embebedarem. Foi por essa razão que me senti tão atraído por essa cidade e passei a examiná-la intensamente”. David Bowie em 1977
Iggy também sofria com críticas para com seu novo trabalho. Exalando angústia ao invés de violência, o novo e barítono Iggy Pop aparecia como ícone de uma nova geração. A libertação de Iggy em vinil trazia muitos de seus clássicos definitivos, um oásis sonoro ousado, concebido por Bowie. Nada daquelas guitarras sujas de outrora, o que chocava o mundo da segunda metade da década era o flerte com o eletrônico, sintetizadores dissonantes, guitarras fragmentadas e música cerebral.
Mal The Idiot chegou nas prateleiras das lojas e um empolgadíssimo Pop montou uma banda para cair na estrada e promover o novo trabalho. Eram mais de três anos longe dos palcos!
A banda consistia nos irmãos Tony Sales (baixo) e Hunt Sales (bateria) e Ricky Gardiner (guitarra). Nos teclados, ninguém menos do que o próprio David Bowie!
Obviamente, Bowie não queria chamar mais atenção do que Iggy e se escondia no fundo do palco durante os shows, assim como se recusava a participar das entrevistas coletivas. A RCA, nem boba nem nada, quando soube da história, soltou um ‘boato’ pela mídia dizendo que Bowie participaria dos próximos shows de Iggy. O interesse do selo era alavancar as vendas dos dois artistas de seu cast.
Todo esse ‘anonimato’ acabou de vez quando a dupla se apresentou no programa da TV norte-americana The Dinah Shore Show. A repercussão do programa foi prejudicial a Iggy, que passou a ser tratado pela mídia como uma espécie de bichinho de estimação de Bowie.
“Ele me ajudou demais, cobrindo os custos iniciais da excursão e me ajudando a montar o show. Foi um pouco chato quando começou todo falatório por ele ser apenas o tecladista, mas o que eu poderia fazer? Ele é uma estrela e quis apenas me ajudar. Não tenho queixas.” Iggy Pop
Mesmo com esse desconforto interno, a tour continuava a mil, tendo o Blondie como banda de abertura.
Enquanto Iggy e Bowie apresentavam suas novas composições na América, pela Inglaterra, shows dos Sex Pistols e do Damned eram temperados com antigos clássicos dos Stooges. Não demorou para Iggy ressurgir como pai de toda a explosão punk inglesa. A boa fase era coroada sem cocaína, mas com bastante álcool.
Bowie decidiu então não promover Low, optou por cair na estrada e se divertir com Iggy. A única ação promocional envolvendo Low foi a gravação de um promo vídeo para a faixa “Be My Wife”, rodado em Paris.
Após as 26 apresentações da Idiot Tour, Bowie, Iggy e toda a banda, voltaram para Berlim e passaram 13 dias gravando o que viria ser Lust For Life, o segundo álbum solo de Iggy, contando novamente com ‘selo Bowie de qualidade’. Um pouco mais básico do que o antecessor, Lust For Life é daqueles clássicos lendários do rock visceral.
A gravação rolou de forma espontânea, afinal de contas a banda vinha azeitada da estrada, sendo que algumas canções como “Turn Blue”, “Tonight” e “Some Weird Sin” já eram apresentadas nos shows da Idiot tour.
Enquanto Iggy saia novamente em tour para promover Lust For Life e emplacava “The Passenger” nas paradas, Bowie ficava em casa (em Berlim) para gravar seu próximo álbum – Heroes. Passava a maior parte do tempo pintando e lendo, evitando ao máximo uma vida pública.
A faixa título do novo álbum teve sua premier mundial quando Bowie participou do show televisivo de Marc Bolan, “Marc”, na TV britânica. A dupla chegou a gravar algumas demos após a gravação nos estúdios e ficaram de realizar algum projeto sonoro nos próximos meses. Dois dias após a gravação do programa de Bolan, Bowie grava sua aparição no programa televisivo de Bing Crosby, num dueto para The Little Drummer Boy. Tanto Bolan como Crosby morrem antes dos programas irem ao ar. Coincidência ou uruca bowiana? Essa é pra ficar cabreiro…
Para Heroes, Bowie fez questão de manter Eno e Visconti. Agora o diferencial ficava por conta de um novo convidado – Robert Fripp que cuidaria das muitas texturas guitarrísticas do álbum. Reza a lenda que Fripp chegou de Nova York, gravou suas partes no estúdio alemão e se mandou no mesmo dia! Alguns fãs do guitarrista consideram sua canja em Heroes um dos ápices de sua longa carreira.
Bowie parecia muito distante do Thin White Duke de outrora. Fazia caminhadas matinais e ia de bicicleta para o estúdio onde gravava Heroes. Nessas andanças pela cidade, reparou que todas as tardes um casal, vindo de lados opostos da cidade, namorava embaixo de uma guarita militar. Depois de um tempo juntos, voltavam cada um para seu lado do muro. O amor vigiado e impossível, dividido pelo muro de Berlim foi inspiração crucial para o novo hit de Bowie – “Heroes”. Tony Visconti ressaltou que Bowie estava vivendo um ótimo período e que aquele era literalmente um álbum heróico. Bowie estava mais vivo do que nunca e pulava dentro de seus maiores problemas, encarando-os de frente e com uma força sublime. O tempo em que corria de seus traumas através de aditivos químicos havia ficado pra trás.
“Eu acredito mais nesses meus dois últimos álbuns do que em tudo que eu tinha feito antes. Há muito mais amor e emoção em Low e especialmente em Heroes”. David Bowie em 1977
Outro fator que levantava o astral de Bowie: longe das maluquices violentas de sua esposa Angela, ele estava livre para curtir seu novo parceiro, Romy Haag, um transformista e cantor de cabaret. Tudo veio por água abaixo quando Bowie reparou que Romy usava o relacionamento para se auto-promover nos jornais alemães. O jeito era curtir passeios com seu filho Zowie pela capital Alemã. Bowie havia pedido a guarda do garoto (conquistada dois anos depois) e precisava trabalhar uma reaproximação com a criança.
Assim terminava o histórico ano de 1977 para Bowie e Iggy. 365 dias de muitas aventuras, abstinências, renascimentos e quatro dos melhores registros fonográficos da música pop.
Bowie ainda continuaria sua fase Berlim por mais dois álbuns, Stage (um duplo ao vivo de 1978) e Lodger, de 1979. Iggy se afastou e lançou pelas próprias pernas New Values. A dupla voltaria a trabalhar junta em 1986, no álbum Blah-Blah-Blah, de Iggy Pop.
Low – A obra-prima mais radical
Um álbum pesado. Sem guitarras distorcidas e berros. Mesmo assim um disco pesadíssimo. A atmosfera problemática e densa desse primeiro volume da ‘trilogia Berlim’ era um fiel reflexo da mente de seu criador. Arrasado e desiludido, Bowie passou uma borracha na sua faceta R&B e se deixou seduzir pela perfeição glacial de agrupamentos como Neu!, Cluster e Kraftwerk. O resultado? Hinos como “Sound And Vision”, “Be My Wife”, “Breaking Glass” e quatro peças instrumentais paridas ao lado de Brian Eno, um oceano de melancolia que serviu de pilar para o pós-punk. Para não soar óbvio demais, basta lembrar que dentre os discos de Bowie, Low é o seu favorito.
The Idiot – O passo mais importante do iguana.
A estréia solo de Iggy, lançada no ano da explosão punk, foi um presente dos deuses ao pai do estilo. Os Stooges ainda eram uma banda maldita, cultuada somente por alguns freaks mais espertos, até que “The Idiot” taxou aquele som de arcaico e apostou numa atmosfera mais densa e cerebral, graças as composições arrebatadoras de Bowie. “Funtime”, “Nightclubbing”, “Sister Midnight”, “China Girl” e a assustadora “Mass Production” são pérolas de um novo estilo, de uma nova agressividade musical. Graças a Bowie, Iggy não só se recuperava musicalmente como dava um golpe certeiro em quem ainda ousava duvidar de sua competência artística. Claustrofobia sonora.
Heroes
Bowie continuava sua reintegração à humanidade, atingindo cada vez mais seu objetivo sonoro e performático – uma espécie de esplendor decadente, como a Berlim dos anos 20. Dos clubes noturnos de “Blackout”, passando por temas instrumentais, aos miseráveis bairros de imigrantes de “Neuköln”, Heroes é retrato fiel da capital gay e drogada da Europa além de um dos mais inovadores trabalhos daquela década. A faixa título, com o timbre único de Robert Fripp, é um dos pontos mais altos da carreira de Bowie.
Lust For Life
Com o mesmo time que vinha da estrada, que incluía Bowie nos teclados, Iggy passou 13 dias no estúdio Hansa de Berlim e registrou Lust For Life, título que caiu como uma luva para seu segundo disco solo. A faixa título virou febre depois de Transpoitting, mas já era uma favorita dos shows e escancarava o intuito de Iggy de voltar à selvageria rocker. “The Passenger” é um poema musicado, baseado em Jim Morrison, onde Iggy usa toda sua bagagem junkie para admirar, de um ambiente externo, todos os excessos de uma metrópole. “Turn Blue” e “Fall In Love With Me” são duas das coisas mais legais que Iggy e Bowie fizeram juntos. Sério candidato ao honroso título de melhor álbum solo do Iguana.
Carinha meio superestimado não? Qualquer coisa dos anos 70 está a anos luz de qualidade.