Tudo sobre um dos combos mais enigmáticos e interessantes do acid folk britânico
Essa banda de nome estranho cunhou dois dos mais apaixonantes e emotivos álbuns do folk britânico.
Você já ouviu falar da lenda de St. Gennys? Pois fique sabendo que esse santo ficou famoso na antiga Inglaterra por sair por aí carregando sua própria cabeça em suas mãos após ela ser decapitada pelos pagãos. St. Roche, manja? Esse curou várias pessoas da “peste”, até ele mesmo fazer questão de contrair a doença que dizimou cidades inteiras na Idade Média. A razão? Ele queria isolar a doença numa madeira, dando aqueles famosos “três soquinhos”, assim a peste não molestaria mais ninguém…
Essas são lendas de santos vindos da cidade de Cornwall, local tão estreito que produz a famosa e procurada (pelos pintores) “luminosidade de dois mares diferentes”. Para alguns moradores, tudo parece ainda permanecer na idade da pedra por lá: plantas selvagens brotam de milenares muros de pedra, e, no inverno, a coisa se torna mais selvagem ainda, com um clima realmente desolador. É desse local pitoresco que surgiu uma banda chamada COB, que de uns anos pra cá foi também beatificada pelos amantes do folk rock bretão.
O trio vivia numa caminhonete quebrada, em meio às árvores, à umidade e aos fungos da anciã Cornwall. A alimentação básica do pessoal era haxixe, cogumelos alucinógenos e licores digestivos. Tudo servindo como inspiração para a música única que criavam, baseada na mitologia celta e com caminhos melódicos que poderiam te levar à mais inusitada das viagens.
O líder desse pessoal era Clive Palmer, um tocador de banjo nascido no norte da Inglaterra que sofreu durante sua infância com uma terrível paralisia infantil. Ficou manco de uma perna, teve uma educação deficitária em função da doença e adquiriu assim uma desconfiança braba com qualquer tipo de autoridade. Claro que ele virou um beatnik, depois hippie e fugiu de carona aos 15 anos de idade até Edimburgo, cidade medieval que é a capital da Escócia. Lá, travou contato com a fervorosa cena musical e artística local e seu passatempo favorito era a ingenuidade da poesia e da marijuana.
Clive foi crescendo e, anos depois, montou um clube folk na cidade e também uma banda, a The Incredible String Band. Saiu logo após o primeiro disco, temendo a fama e a consequente banalização de sua música, assim como o diabo temia a cruz. Caiu na estrada, viajou por países exóticos e voltou tempos depois, se instalando em Cornwall, onde encontrou o londrino Mick Bennett, talvez o mais subestimado vocalista da história da música folk. A dupla se juntou a um multi-instrumentista local chamado John Bidwell.
A vida do trio de jovens músicos teve outro rumo quando eles conheceram a receptividade de uma família tradicional da cidade, chamada The Val Bakers. O patriarca do clã era Denys Val Baker, um poeta pacifista que tinha uma certa admiração pelos jovens hippies que aportavam em Cornwall em busca de alguma liberdade. Denys era dono de um grande pedaço de terra e deixou Palmer, Bennett e Bidwell morarem em um de seus chalés, sem terem que pagar um centavo. Vivendo na bucólica e modesta “residência”, Clive montou por pouco tempo uma banda chamada The Temple Creatures, que logo se transformou no COB (Clive’s Original Band). Da família Val Bakers, Clive contava com a ajuda também de duas belas jovens percussionistas: Demelza e Genevieve Val Baker, filhas de Denys, o landlord da propriedade onde os músicos viviam.
Uma das poucas entrevistas cedidas por Clive Palmer está impressa no genial livro The Ballad Of Britain, do jornalista Will Hodkginson. Num papo descontraído, Palmer confessou como criou a sonoridade única do COB: “A gente nunca tinha uma ideia pré-estabelecida de composição. Simplesmente começávamos a tocar, todos juntos, e daí surgiam as inspirações. Naquela idade, a nossa criatividade estava aguçada, era fácil compor. Todas as minhas músicas eram criadas de maneira bem rápida e espontânea. Eu tinha imagens na mente e isso certamente ajudava”.
A CBS se interessou pela banda, já que existia a conexão de Palmer com a The Incredible String Band, que vendia bastante, inclusive fora da Inglaterra. Lembrando que o grupo chegou até mesmo a tocar em Woodstock. Animados, o selo colocou no mercado o álbum Spirit Of Love, que saiu em novembro de 1971.
Na imprensa britânica, uma chuva de elogios levava a crer que o novo grupo de Clive Palmer seria um tremendo sucesso. O jornal Melody Maker escreveu: “Esse trabalho justifica completamente a fama de inovador de Clive Palmer. O COB não se compara com nada da cena folk e seus temas são imprevisíveis numa primeira audição”. O Disc & Music Echo escreveu: “A banda apresentou alguns desses temas durante sua apresentação no Festival Hall, no último verão e a aceitação foi grandiosa, e deve ser também com esse disco”. Já o Record Mirror publicou: “Grande exemplo da música calma, contemplativa e acústica de Palmer, com violões, cellos, flautas, órgão e percussão. É um pouco cansativo em parte, graças ao tempero de música indiana, mas é, sem dúvida, um disco experimental que parece marcar o nascimento de algo maior”. Pra fechar a boa fase, outra boa resenha no semanário Sounds: “É ótimo ver Clive novamente em ação com uma banda e um trabalho que realmente faz jus a todo o seu imenso talento. A banda é disciplinada e usam instrumentos exóticos para criar um ótimo efeito”.
Com clima tranquilizante, mas ao mesmo tempo misterioso, Spirit Of Love é fácil uma das melhores estreias de um grupo folk. A produção cuidadosa e laboriosa de Ralph McTell também merece nota, não é nada fácil gravar instrumentos acústicos, mas ele se saiu extremamente bem. “Scranky Black Farmer” é densa e tenebrosa, com vocais tribais em uníssono; já “Evening Air” é puramente medieval, com flauta doce e clima soberbo. A faixa-título é uma espécie de canção de ninar; “Soft Touches Of Love” tem ligação umbilical com a The Incredible String Band; “Banjoland” traz as habilidades instrumentais de Palmer e um som alegre de praia mais ao fundo; mas talvez o maior destaque seja “Music Of The Ages”, uma obra-prima tenebrosa, trazendo o instrumento símbolo do grupo, a dulcitar, uma mescla de cítara com dulcimer. O efeito é único e a voz de Bennett soa com ecos e reverbs, tendo a dulcitar em segundo plano, um marco. A mescla de música árabe com a música rural inglesa foi uma jogada de mestre do trio, assim como as ótimas letras de Mick Bennett.
O trio mudou então para Londres, onde excursionou bastante, passando pelos principais clubes e casas de show da cidade. As vendas do disco estavam deixando muito a desejar, mas, mesmo assim, a Polydor mostrou interesse pelo grupo e os contratou, lançando imediatamente um compacto (que hoje é uma grande raridade) contendo duas novas canções mais comerciais e inéditas: “Blue Morning” (um reggae) e “Bones” (mais na linha hilária/ácida dos Kinks). De nada adiantou, as vendas continuaram uma lástima.
O som do COB é mesmo único e isso se deve talvez a uma teimosia de Clive Palmer, que desde garoto se recusava a ouvir música de outros grupos: “Nunca fui de escutar muita música. Minha mãe e meu irmão gostavam muito de música, então fui encorajado desde muito cedo a cantar e a tocar banjo, mas sempre tive um problema em ouvir as demais bandas… Eu gostava de fazer a música que eu ouvia dentro da minha própria cabeça. Essas outras influências certamente iriam me atrapalhar. Nunca usei outras músicas para usar de base para a minha própria, aliás, acho isso um tremendo erro. É muito mais louvável ser você mesmo”.
Palmer continuou a compor seu intrincado mosaico de climas e estilos e cunhou outro álbum que foi muito mais do que uma coerente coleção de simples canções. Para o lançamento de Moyshe McStiff And The Tartan Lancers Of The Sacred Heart, o trio agora era contratado da Folk Mill, um braço da Polydor exclusivo para lançar trabalhos da emergente cena folk inglesa como The Peelers e Barry Dransfield. O álbum, de arte gráfica primorosa e luxuosa capa dupla, e temas baseados no Velho Testamento, saiu em 1972 e é considerado um dos mais complexos e desafiadores registros do estilo.
Hinos pastorais, cantos sagrados e baladas delicadas são o menu, a psicodelia mais gratuita do primeiro disco, e a herança direta da The Incredible String Band, são coisas do passado. O COB reinava soberano em seu território e Clive Palmer era o patriarca desse clero. Uma ode ao remoto e rural, com vibração da modernidade que aflorava naquele ainda início dos anos 1970.
Nesse segundo trabalho, Mick Bennett e John Bidwell estavam mais presentes, batalhando ao lado de Clive Palmer em prol da música distinta, comovente e quase religiosa do COB. O misticismo pastoral de Moyshe McStiff And The Tartan Lancers Of The Sacred Heart atinge níveis surreais em “Let It Be You”, que surge após a abertura com “Sheba’s Return – The Lion Of Judah”. “Chain Of Love” tem um ótimo refrão e som de baixo, cortesia do grande convidado Danny Thompson, baixista do Pentangle; “Heart Dancer” é tribal, tensa e medieval ao mesmo tempo; e “Solomon’s Song” é o definitivo lamento folk, tão importante como um blues sofrido de Robert Johnson. “Oh Bright Eyed One” é outro hino do disco e mostrava que musicalmente, estruturalmente e liricamente, em todos esses níveis, o COB chegava à beira da perfeição.
O Sounds concordava: “A textura sonora desse novo trabalho é brilhante. Palmer merece todos os aplausos por essa sua nova aventura. Todos os integrantes agora estão em perfeita simetria e o COB é uma das bandas mais inovadoras do pedaço”. O Melody Maker também não ficou atrás: “O COB é o que muitas bandas de hoje não são: eles são um desafio à imaginação. Eles se lançam para a música sem o menor medo das consequências. Eles estão na frente por experimentar com uma selvagem variedade de tradições musicais acústicas. Eles adotaram a música do Ocidente e do Oriente e as mesclaram criando um resultado único”.
Mais recentemente, Patrick Lundborg, o curador do site lysergia.com – uma das maiores bases de dados da cultura psicodélica na internet – e autor do imprescindível livro The Acid Archives relatou sem medo: “Moyshe McStiff… é o melhor elepê já gravado na Inglaterra. Espero achar algo ainda melhor algum dia, mas honestamente eu duvido que isso irá acontecer”.
Apesar das excelentes críticas, do sucesso entre intelectuais e jornalistas, e de uma tour de promoção abrindo para o Pentangle, ambos os discos lançados pelo COB, em 1971 e 1972, foram um tremendo fracasso de vendas e a total falta de grana levou ao desmantelamento do grupo durante a primavera seguinte.
Clive Palmer parece nunca ter esquentado muito a cuca com isso: “A única razão desses discos terem saído é que as gravadoras na época estavam praticamente jogando dinheiro fora e apostando em bandas que teoricamente eles gostavam. Eles chegaram até o produtor Ralph McTell e pediram uma sugestão e ele nos indicou. Eles (das gravadoras) pensavam que os discos venderiam bem, o que não aconteceu. Pelo menos eles (os discos) têm sido apreciados por algumas pessoas que vem redescobrindo esses trabalhos através dos anos”.
Uma das maiores virtudes de Palmer é sua autenticidade. Ele não estudou o folk tradicional por anos a fio… Ele apenas foi ele mesmo. O antigo líder do COB e da The Incredible String Band vive hoje numa modesta casa atrás de algumas lojas, na cidade de Penzance, Inglaterra. Will Hodkginson foi o incansável herói que o localizou, depois de todos esses anos de anonimato, para sua excepcional obra Ballad Of Britain. Hodkginson relata no livro que a casa de Palmer é uma completa bagunça e que seu proprietário fica de certa forma perplexo quando o entrevistador relata, de maneira até um pouco constrangedora, seu amor pelos únicos dois trabalhos do COB.
Palmer responde com uma cândida franqueza: “Os discos do COB são ok. Cabe às pessoas dizerem se gostam ou não deles. Estou muito bem tendo somente que esperar a opinião dessas pessoas. As pessoas costumam dizer que você tem que se mostrar e dar a cara a bater, mas, se tiverem que surgir oportunidades pra você, elas irão aparecer mais cedo ou mais tarde. Quase não toquei nos últimos cinco anos. Não sou uma pessoa de uma só aptidão, e gosto de fazer muitas outras coisas. Não abandonei a música por completo, posso voltar a fazê-la caso eu sinta que realmente deva. O jogo de paciência, de esperar o momento certo, é sempre o melhor caminho… Apenas espere que as pessoas queiram ouvir algo de você. É sempre melhor não se mostrar muito. O melhor é deixar as pessoas te descobrirem e virem até você”.
Hoje, versões originais dos dois álbuns e do único compacto lançado pelo COB são raríssimos e quase impossíveis de aparecerem em sites de leilão como o eBay. Esses trabalhos adquiriram status e estatura através dos anos e hoje são venerados pela nova geração de artistas folk como Devendra Banhart, Circulus, Espers e Joanna Newson.
Artigo originalmente publicado na pZ 51