O progressivo italiano do Campo di Marte

Assim como outros ícones do prog italiano que ficaram num único trabalho, o Campo di Marte virou uma banda cultuada

por Radames Junqueira     26 dez 2014

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O único disco de toda a cena progressiva italiana lançado pela major United Artists é hoje considerado um clássico do gênero. Obra concebida pelo guitarrista Enrico Rosa, foi lançada na época até em países como Argentina e Uruguai, com as tradicionais traduções para o espanhol dos títulos das músicas, e sob o nome de Campo “de” Marte.

O atraso foi certamente o fator que mais prejudicou os planos da banda de Florença, Itália. Quando o único trabalho homônimo lançado por eles foi gravado, em janeiro de 1973, fazia ao menos dois anos que o disco já estava concebido, composto, arranjado e ensaiado. Quando o trabalho finalmente saiu, o líder Enrico Rosa já estava em outra, tanto que como Campo di Marte o grupo existiu por apenas seis meses. Enrico estava farto de tudo e queria tocar apenas com uma nova versão mais fusion do grupo que estava engendrando. O ápice da bola fora aconteceu num mega festival, onde o Campo di Marte abriria para o Colosseum. Ao invés do show convencional, Enrico optou por subir sozinho ao palco com sua guitarra, e apresentar uma longa peça solo, rearranjada com base no elepê do grupo. Fiasco completo, com críticas surgindo de todos os lados. O que ele queria era provocar, principalmente àqueles que esperavam algo característico de sua banda.

Enrico Rosa tocava numa banda chamada Senso Unico, e rodou incansavelmente o circuito musical italiano dos anos 60. Numa dessas andanças, foi convidado a integrar a banda La Verde Stagione, cujo baterista Mauro Sarti gostou tanto do estilo de Enrico que passou a convencê-lo de algo não muito simples: montar uma banda com um som completamente novo, rico e harmonicamente bem complexo. Para o baixo a dupla contou com um jovem músico norte-americano que vivia em Florença, Richard Ursillo, que curiosamente foi creditado como Paul Richard na contracapa do disco do Campo di Marte, afinal de contas, “Ursillo” era “muito italiano” mesmo, convencional demais.

Nessa época Enrico dividia um apartamento com o baterista da banda I Califfi, Carlo Felice Marcovecchio, que além de percussão, tocava piano, trompa e diversos instrumentos de sopro. Carlo era também amigo de Mauro Sarti e estava louco para ingressar num grupo menos pop e mais progressivo. Seria um desperdício completo deixá-lo apenas tocando bateria nos shows ao lado de Mauro. Ficou acertado então que ele também usufruiria muito bem de suas demais habilidades musicais, tanto em estúdio como nas apresentações. Outro reforço foi a aquisição de Alfredo Barducci, cuidando dos vocais, piano e sopros. Todos tinham influências eruditas, com exceção de Enrico, um fanático por jazz.

A sonoridade do Campo di Marte mostrou singularidade assim que o álbum chegou às lojas. O baixo era tocado com palheta, a bateria aparecia registrada de diversas maneiras, sozinha, adicionada de uma outra, ou com percussão. O órgão era limpo, quase sacro, diferente do que os demais grupos faziam na época com o Hammond. Tudo costurado por duelos de sopros e guitarra elétrica. Um detalhe curioso é que todo o álbum foi composto por Enrico Rosa, e não pela banda. Foi ele que cuidou de cada detalhe, inclusive das linhas de piano e baixo. Vendo por esse âmbito, poderia ser mais um disco solo do músico do que algo do Campo di Marte. A ordem e os títulos das músicas foram alterados, diferente do que Enrico vislumbrava originalmente. As mudanças, cortesia do empresário Gian Borasi, da United Artists, o selo dos rapazes, deixaram Enrico furioso. Falando nisso, o Campo di Marte pode se dar ao luxo de ter sido a única banda progressiva italiana a ter um trabalho lançado pelo poderoso selo.

O disco sofreu críticas por não ser totalmente original – alguns jornalistas italianos o acusaram de ser um pastiche de bandas progressivas britânicas como Genesis, Uriah Heep, VDGG e Wishbone Ash. Mas é inegável que é um trabalho muito bem concebido e executado. As sete faixas foram nomeadas e sequenciadas como uma sinfonia, de “Primo Tempo” até “Settimo Tempo”. Os vocais eram mínimos, porém belos e bem postados. O rico instrumental é o que mais impressiona, mesclando magistralmente as passagens acústicas com as mais agressivas. Os climas criados pelo Campo di Marte também são surpreendentes, assim como a diversidade do trabalho como um todo.

Cada movimento tem um estilo próprio, uma construção distinta, uma vibração diferente. Durante as sessões, uma faixa extra chamada “Si Può Riuscire” foi registrada com o intuito de ser lançada como single, o que infelizmente não aconteceu.

Shows pela Itália se seguiram, dentre eles um histórico, ao lado do legendário Franco Battiato. Enrico chegou a fazer uma jam com Battiato, que em retribuição lhe ofertou um acetato com o que viria a ser seu clássico álbum Fetus.

Incrivelmente, o Campo di Marte ficou num único disco. Enrico chegou a gravar um segundo elepê, contando com uma formação e um som diferente (voltado para o jazz-rock), mas esse trabalho nunca foi lançado. A United Artists achou tudo demasiadamente futurista e sem o menor apelo comercial. Acharam que a melhor atitude a ser tomada seria engavetar o disco. Enrico, com toda razão, tomou aquilo como ofensa e se mudou para a Dinamarca, onde havia descolado uma residência de três meses como músico de um piano bar, num hotel de luxo. Na Itália, deixou para trás uma grande e promissora turnê com a banda e uma proposta para ser o novo guitarrista do Banco del Mutuo Soccorso. Quanto ao trabalho inédito do Campo di Marte, os rolos originais ficaram com Gian Borasi, que se mudou para o Marrocos, depois Tailândia, antes de sumir completamente do mapa. Uma pena, já que aquela distinta formação do grupo trazia além do exímio Enrico, integrantes que haviam passado por grupos como I Giganti, I Samurai, Capitolo 6, e outros.

Enrico Rosa voltou para a sua Itália em 1976 e lá tocou com muita gente, desde acompanhando cantores pop como músico contratado, até participando de altas jams com grupos de vanguarda como o Area.

Em 1994 o disco do Campo di Marte ganhou sua versão em CD, conquistando assim uma grande legião de apreciadores. Esse agito todo foi crucial para Enrico colocar sua banda novamente na estrada em 2003. Alguns concertos na região da Toscana foram realizados e deles surgiu o registro ao vivo Concerto Zero, lançado no ano seguinte pela BTF/Vinyl Magic, trazendo ainda de bônus uma gravação de um show de 1972. Em 2007 a Vinyl Magic inclusive relançou o disco oficial de 1973 em LP vermelho. A versão em CD mini-LP da BTF surgiu imponente, remasterizada, trazendo o tracklist e os nomes originais das faixas, assim como foi concebido por Enrico Rosa em 1973.

Assim como outros ícones do prog italiano que ficaram num único trabalho, como Museo Rosenbach, De De Lind, Maxophone, Alusa Fallax e Raccomandata Ricevuta Ritorno, o Campo di Marte virou uma banda cultuada.

nome e la copertura

O nome da banda italiana chama quase tanta atenção como a arte gráfica que ilustra a capa de seu único elepê, lançado em 1973.

Antes de se chamarem Campo di Marte, como quase toda banda amadora, mudaram de nome por diversas vezes. Entraram em estúdio para a gravação do tão aguardado disco, mas faltava ainda algo crucial, o nome definitivo do conjunto. Passaram um dia inteiro pensando em algo, e quando já estavam desistindo, o diretor da United Artists italiana (o selo deles), Gian Borasi, sugeriu que a banda falasse os nomes de algumas regiões da Florença. Quando alguém gritou “Campo di Marte” todos se olharam, o nome estava escolhido.

Segundo o guitarrista/vocalista/tocador de Mellotron, Enrico Rosa, a escolha do nome foi apenas uma desculpa para o grupo poder abordar livremente uma temática crítica em relação à estupidez das guerras. “Marte” é também o Deus romano da guerra sangrenta. A capa deveria então seguir o mesmo caminho e por isso foi escolhida a incrível imagem dos soldados mercenários turcos, que ao perfurarem a si mesmos demonstravam sua força, lealdade e, é claro, um aumento considerável em suas recompensas. Nos pôsteres gigantes de divulgação, pendurados nas lojas de discos pela Itália, a imagem ganhava um ar ainda mais desagradável, incomodando quem passasse por eles.

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