Daevid Allen tem razão. Todo apreciador de Gong que se preze tem um carinho todo especial por Camembert Electrique
“Eu tinha o sentimento de que este álbum ficaria um bom tempo pairando por aí…”
Daevid Allen tinha razão. Todo apreciador de Gong que se preze tem um carinho todo especial por Camembert Electrique, assim como seu criador, já que esse foi o primeiro álbum que o Gong registrou sendo uma “banda de verdade”. Magick Brother já havia sido lançado em 1969, mas foi considerado um álbum solo de Daevid com Gilli Smith, apesar de trazer o nome Gong na capa. A trilha sonora Continental Circus saiu em 1971, pela Philips, mas é também considerada um trabalho solo de Daevid.
Camembert Electrique foi registrado no Château d’Hérouville, um castelo/mansão localizado próximo a Paris, onde Chopin inclusive tinha morado um tempo. A produção ficou a cargo de Pierre Lattes, com engenharia sonora de Gilles Salle e produção executiva de Jean Karakos, que era chamado por Daevid de “Byg Jean Kastro Kornflakes”.
O Château pertencia ao compositor/playboy Michel Magne, que o comprou em 1962. Ali construiu um estúdio de gravação de ponta, praticamente inaugurado pelo Gong, já que depois deles, grupos e astros como Pink Floyd, Elton John (que batizou seu disco como Honky Château em homenagem ao local), Bowie, T. Rex, Jethro Tull, Uriah Heep, Sweet, Bad Company, New Trolls, Bee Gees, Iggy Pop e muitos outros passaram a gravar seus álbuns por lá.
Daevid Allen estava animado em gravar num estúdio de última geração. Sabia exatamente o que iria gravar e como iria gravar. O processo foi tão satisfatório como um todo que Daevid lembrou particularmente da mixagem em seu livro Gong Dreaming 2 1969-1975: “A mixagem contou com todos os integrantes e o pessoal do estúdio amontoado na sala de controle; um processo que deu certo e fluiu bem graças a uma hábil mediação do engenheiro de som Gilles Salle.”
A alegria de Daevid era tamanha que três dias depois lá estava ele, atirado no chão dos fundos do estúdio, ouvindo a mixagem em seu fone de ouvido e olhando para as nuvens. “Eu me senti completamente realizado, e estava muito feliz. Naquela altura a gente havia ganhado.”
Na manhã seguinte Daevid acordou tomado por um sentimento de alegria e satisfação. Sentia uma necessidade imensa de compartilhar aquilo com o mundo todo, de espalhar por aí os fundamentos peculiares de sua banda/coletivo.
A estratégia de Daevid para promover seu Camembert Electrique foi bem interessante. Por diversas manhãs consecutivas ele pessoalmente ligou para a redação de publicações independentes pela Inglaterra. Literalmente “passou uma lábia” nos jornalistas que mais apreciava, gente que escrevia em publicações chave do underground da época, como Oz, International Times e Friendz.
“Isso teve o efeito de furar o muro de paranóia de rodeava a imprensa da época, e ao mesmo tempo alertar a eles sobre a existência de um grupo com um respeitável pedigree musical, da linhagem do Soft Machine, e um atraente senso de diversão,” relata Daevid em seu livro. A tática “homem a homem” do líder do Gong funcionou. Imediatamente pipocaram artigos interessantes sobre Camembert Electrique em publicações como Melody Maker, Time Out e Friendz.
Naquele ano de 1971 o álbum foi lançado somente na França, pelo selo BYG Actuel. No Reino Unido, uma loja de discos localizada em Edimburgo, capital da Escócia, anunciou exclusivamente que importava cópias francesas do álbum.
Na Inglaterra, Camembert Electrique saiu oficialmente somente em 1974 pela Virgin, dentro de um plano de marketing que não funcionou. O recém criado selo de Richard Branson acreditava que se determinados álbuns fossem vendidos com um preço bem abaixo do mercado a procura seria maior, assim como a exposição do artista, que teria então seus demais álbuns (a preços tradicionais) procurados por quem teoricamente adquiriu a pechincha. Isso poderia até funcionar com algo mais comercial, mas não com Gong, Faust, ou Can, grupos que tiveram seus álbuns lançados pela Virgin por menos de uma libra esterlina cada. Camembert Electrique foi ainda relançado pela Caroline Records (um selo budget de propriedade da Virgin) e pela Charly Records, no final dos anos 70. Mais recentemente recebeu um belo tratamento da Get Back Records, que o relançou em imponente vinil de 180 gramas.
Camembert Electrique é uma colisão de prog, psicodelia, space rock, punk, free jazz, experimentos eletrônicos e outros estilos que ninguém ainda teve coragem de batizar. Humor, viagens sonoras e muita energia estão por todo lado. A maneira que mesclam texturas atmosféricas com “barulho” é soberba, assim como os duelos de guitarra e sax, e a intercalação de vozes e gemidos femininos e masculinos – cortesia do casal Daevid Allen e Gilli Smyth, ou melhor – “Bert Camembert” e “Shakti Yoni”.
Acompanhado a dupla estão Didier Malherbe (ou “Bloomdido Bad De Grass”) no sax e flauta; Christian Tritsch (ou “Submarine Captain”) no baixo e guitarra e Pip Pyle na bateria. Também listados na ficha técnica do elepê estão Francis Linon (ou “Venux De Luxe”), que era o engenheiro de som da banda nos shows e Sam, filho de Robert Wyatt. Linon foi creditado no álbum como “switch doctor and mix master”.
A foto que consta na versão capa dupla do elepê é no mínimo memorável, com toda essa trupe de malucos excêntricos, Daevid segurando um cajado e o jovem Sam olhando com cara de susto (veja reprodução abaixo).
O riff grudento de “You Can’t Kill Me” se tornou marca registrada da banda, assim como a gama de possibilidades a serem exploradas numa única faixa. O entusiasta e colecionador norte-americano Aaron Milenski certa vez declarou algo interessante sobre a música do Gong, particularmente aquela contida em Camembert Electrique. Segundo ele o grupo tem centenas de ótimas ideias, mas essas nem sempre são completamente exploradas, o que gera uma pequena frustração: “As criativas ideias do Gong aparecem com maior abundância em Camembert Electrique, mais aqui do que em qualquer outro trabalho do grupo. Só que eles geram tantas ideias, algumas delas ao mesmo tempo, que as melhores acabam surgindo e desaparecendo muito rapidamente, mal sendo registradas. Quando um refrão bacana surge, ele é executado uma ou duas vezes… Assim que o ouvinte suplica por uma repetição daquilo o Gong já está em outra tangente, geralmente menos interessante. Eles deveriam ter pegado algumas dicas com o Faust, que sabe quando um groove merece ser explorado”.
A partir de 1973 o Gong lançou sua mais popular trilogia: The Radio Gnome Invisible, Pt 1: Flying Teapot (1973), Angel’s Egg (1974) e You (1974). Muitos dos personagens que marcavam presença nestes álbuns foram introduzidos, mas não desenvolvidos, em Camembert Electrique. Trata-se portanto de um crucial álbum de transição dentro da extensa discografia do grupo.
Existe um rico material enterrado em Camembert Electrique, material esse abundante, que vai sendo prazerosamente descoberto a cada audição. Tranque as portas e janelas, desligue celular, TVs e computadores. Você irá se conectar a uma outra realidade paralela. Apenas esteja preparado…
Artigo originalmente publicado na pZ 39
http://youtu.be/gFpAz_XGlKc