Revisitamos a obra de um dos pilares do som de Canterbury
Ele foi fundador do Wilde Flowers e depois integrou o Soft Machine, se tornando um dos pilares do som de Canterbury. Sua longa e expressiva carreira solo o transformou numa celebrada instituição da música britânica e sua integridade artística parece não ter fim. Hesitante ao ser chamado de lenda, Wyatt prefere ser chamado de imprudente, hedonista e autoindulgente. Tão hedonista que considera seu acidente sofrido em 1973 como “um bom passo dentro da carreira”.
Como diz o amigo Phil Manzanera, Robert Wyatt faz o entretenimento ter importância, ter substância. Sua personalidade é peculiar e está impressa na música que produz. Sua música é um testamento de sua vida pessoal, como acontece com os grandes e mais genuínos artistas.
Sua vida artística começou quando ele passou a ter aulas com George Neidorf, músico de jazz norte-americano de passagem por Canterbury. Em 1962, ele e George foram passar uns tempos no meio do Mediterrâneo, na ilha de Majorca, onde Wyatt conheceu o poeta Robert Graves.
Voltando à Inglaterra no ano seguinte, interessado em música e poesia, Wyatt conheceu Daevid Allen e se junto ao Daevid Allen Trio, que também contava com Hugh Hopper. Allen depois largou tudo e foi para a França, deixando Wyatt e Hopper pra trás. Ambos formaram então o Wilde Flowers, com Kevin Ayers, Richard Sinclair e Brian Hopper. Estava fundada a banda seminal de Canterbury, que serviria de inspiração e celeiro para a maioria das demais que surgiriam na região. Já dava pra perceber que Wyatt seria um dos mais criativos músicos e indivíduos de sua geração.
Em 1966, o Wilde Flowers já era passado. Wyatt e Kevin Ayers se juntaram então a Daevid Allen e Mike Ratledge no Soft Machine, um grupo com uma proposta completamente nova e aberta, que sacudiu os alicerces do underground europeu.
Depois de quatro álbuns o baterista deixou o grupo e lançou seu primeiro álbum solo, The End of an Ear, totalmente experimental e com influências de free jazz. Suas habilidades percussivas e sua voz frágil, utilizada também como um instrumento, eram os destaques dessa primeira aventura solitária. Nos teclados de The End of an Ear estava David Sinclair (Caravan), que no ano seguinte se juntaria a Wyatt num novo projeto: Matching Mole. Mas antes Wyatt participou do ambicioso projeto Centipede, capitaneado pelo amigo Keith Tippett (ver mais na pZ #33).
Phil Miller (ex-Delivery, futuro Hatfield and The North e National Health) e Bill MacCormick (Quiet Sun, 801) estavam na guitarra e no baixo do Matching Mole, nome surgido de um jogo de palavras pra cima de Machine Molle, a tradução para o francês de Soft Machine.
O primeiro álbum, homônimo, surgiu em abril de 1972 e foi composto quase que inteiro por Wyatt. Era, definitivamente, um novo conceito em art rock – repleto de improvisações, belas melodias exóticas e também algum humor, bem britânico, é verdade. O segundo trabalho do projeto, Little Red Record, teve menor envolvimento do baterista, que escalou os amigos Robert Fripp e Brian Eno para dar uma mãozinha, sendo que Fripp produziu o disco. A capa e o título não escondiam uma alusão ao Little Red Book de Mao e a Revolução Cultural Chinesa.
Sem medo de expor sua posição política esquerdista, Wyatt depois acabou angariando a simpatia do movimento punk pela Inglaterra. Gostava de falar sobre e para o povo. Durante o governo de Margaret Thatcher, seu radicalismo ficou ainda mais intenso, com ele apoiando o Comunismo de maneira decidida e resoluta, mesmo com iminência da Glasnost. Nos anos dourados agressivos do punk, o artista não se calou, lançando uma série de compactos pelo selo independente Rough Trade. Uma constante em sua carreira sempre foi ir contra as expectativas de quem fosse, tanto que registrou inesperadas versões para “At Last I Am Free” do Chic, ou “I’m a Believer”, dos Monkees.
Mas foi no primeiro dia de junho, de 1973, que a carreira de Robert Wyatt renasceu. Durante uma festa para Gilli Smyth (Gong) e Lady June, um embriagado Wyatt despencou de uma janela, do quarto andar. Em função do acidente o baterista ficou paralisado da cintura pra baixo. Precisando de grana para se manter e se adaptar à nova realidade, Wyatt contou com a ajuda do Soft Machine e do Pink Floyd, que fizeram dois shows beneficentes, apresentados pelo amigo John Peel.
Sua carreira de baterista ao lado do Matching Mole ficou de escanteio e Wyatt passou a organizar seu segundo disco solo, com a ajuda dos amigos Mike Oldfield, Ivor Cutler, Fred Frith (Henry Cow) e Nick Mason. O que ele criaria dali por diante, utilizando teclados e percussão manual, seria o “som da liberdade” como ele mesmo declarou, um passo adiante das suas responsabilidades como baterista. Para ele, foi muito mais humilhante ter sido rejeitado pela florescente comunidade jazz-rock (leia Soft Machine). Após o acidente, ele tinha talentosos amigos pela primeira vez ajudando-o em suas próprias criações. “Na verdade o acidente foi um momento de celebração na minha vida. Antes de eu começar tudo novamente, em 1973, eu era apenas um sujeito miserável, infeliz e nada confortável”, declarou o compositor na revista Mojo, em 2005.
Graças a sua esposa, Alfie, passou a escutar flamenco e também música folclórica da Bulgária. Percebeu que existia “soul music” em toda parte do mundo. Essa espécie de revelação teve um gigantesco impacto em sua carreira, assim como Picasso, Mingus, Dolphy e o Dadaísmo tinham tido anos antes. Frustrado não com sua condição atual, mas segundo o próprio, com a cena musical careta e tediosa de 1974, Wyatt sentia inveja dos ambientes criativos que impulsionaram movimentos artísticos no passado.
De um ponto de vista, se tornar um deficiente físico era uma experiência única para um rockstar, uma experiência excêntrica inclusive, caso você tire o peso negativo da coisa, como Wyatt sempre fez questão de fazer.
Essa experiência impulsionou um trabalho totalmente original, Rock Bottom, lançado em 1974. Era um exemplo do que menos derivativo existia no cenário musical, ou no idioma do rock da época. Não havia antecedentes para Rock Bottom.
O compacto com sua versão para “I’m a Believer”, também produzido por Nick Mason, chegou alto nas paradas britânicas. Não demorou para o Top of the Pops solicitar a presença de Wyatt num de seus episódios semanais. O problema foi que o produtor do programa alegou que a performance do músico cantando numa cadeira de rodas “não seria adequada às famílias britânicas” que assistiam ao programa. Wyatt insistiu e apareceu em sua cadeira de rodas, com Mason acompanhando-o na bateria. Em protesto, a edição seguinte da NME trazia em sua capa Wyatt e toda a sua banda em cadeiras de rodas.
O próximo compacto seria com uma versão para o reggae “Yesterday Man”, de Chris Andrews, mas a Virgin achou que não seria uma boa estratégia após o sucesso do single anterior. O lançamento foi então arquivado.
Ruth Is Stranger Than Richard (1975) foi seu próximo LP, com colaborações de Fred Frith, Gary Windo e Brian Eno, que tocou múltiplos instrumentos e “direct inject anti-jazz ray gun” no álbum. Em agradecimento, Wyatt apareceu no lançamento seguinte do selo de Eno (Obscure Records), Voices and Instruments, disco de Jan Steele e John Cage (1976). No tracklist, duas canções de Cage interpretadas por Robert.
Durante a segunda metade da década de 70, ele não lançou nada como artista solo, optando por aparecer em apresentações e gravações de amigos, bandas e artistas como Henry Cow, Hatfield and the North, Carla Bley, Eno, Michael Mantler e Phil Manzanera.
A década seguinte presenciou um artista mais politizado, membro do Partido Comunista da Grã Bretanha. Lançou singles de viés político e colaborou com Elvis Costello, News from Babel, Scritti Politti e Ryuichi Sakamoto. Seu quinto disco solo surgiu somente em 1985, Old Rottenhat, e uma biografia pintou em 1994 – Wrong Movements, escrita por Michael King.
Sempre atraindo a atenção do underground, a música de Wyatt geralmente molestava e incomodava o grande público, sedento por músicas e melodias de fácil assimilação. Algumas publicações de música sacaram isso e criaram um novo verbo, Wyatting, que consistia na ação de tocar faixas pouco usuais, visando espantar as pessoas de um bar, por exemplo. Anos depois, o The Guardian quis saber a opinião do músico a respeito: “Acho isso muito engraçado. Fico honrado com a ideia de me tornar um verbo. Na verdade eu não gosto de confundir e incomodar as pessoas, mas mesmo quando tento ser normal eu acabo incomodando”.
Nas duas últimas décadas ele produziu apenas mais quatro discos solo, sendo o mais recente Comicopera (2007), mas participou de inúmeros outros projetos com amigos.
O que certamente influenciou a música única praticada por Robert Wyatt foi a sua atração pela música popular de qualquer canto do planeta. Essa atração serviu de contraponto ao fato dele ter sido influenciado pelos poetas beat, antes mesmo do surgimento do pop. Pintores e poetas vanguardistas permeavam seu cerne criativo desde muito cedo.
“O que me mantém em atividade é o constante senso de desapontamento com o que eu já criei”. Cabe somente aos grandes artistas esse tipo de raciocínio. Inquieto, Wyatt sem perceber criou uma obra sim, de cunho intelectual, mas repleta de inúmeras facetas emocionais, como compaixão, submissão, humildade e pura alma.
O ESSENCIAL DE ROBERT WYATT
Volumes One and Two
(Soft Machine, 1968/1969)
CD que reúne os dois primeiros álbuns do Soft Machine. Psicodelia britânica de ponta e duas cartilhas do som de Canterbury. Jazz, dadaísmo e humor excêntrico – experimentos que permearam toda a trajetória de Robert Wyatt.
Third
(Soft Machine, 1970)
Disco duplo, com quatro longas faixas que, juntas, fomentaram uma obra tão seminal como Bitches Brew, de Miles Davis. A surreal “Moon in June” é até hoje o tema mais associado ao seu compositor: Wyatt.
The End of an Ear
(Robert Wyatt, 1970)
Um dos mais belos, livres e incompreendidos discos de sua carreira, com releituras de Gil Evans, proposta vanguardista e homenagens musicais experimentais.
Matching Mole
(Matching Mole, 1972)
O segundo álbum do projeto Matching Mole tinha Robert Fripp e Brian Eno, e gerou controvérsia, mas este primeiro é mais consistente musicalmente. Tão pessoal que pode ser considerado o segundo disco solo de Wyatt.
Rock Bottom
(Robert Wyatt, 1974)
Intenso, poético, surreal e até com um certo capricho autodepreciativo, Rock Bottom é emocionalmente acessível a todos, mesmo com sua aparente complexidade. Obra-prima.
Ruth Is Stranger Than Richard
(Robert Wyatt, 1975)
Ao contrário de Rock Bottom, Wyatt se autoproduziu neste disco, e adaptou canções de outros artistas. Mesmo assim, criou um trabalho extremamente pessoal, de teor relaxado e aflitivo.
Muito bom !