A traumática tour de The Wall

Um relato sobre os últimos shows de Roger Waters com o Pink Floyd até a tímida reunião no Live 8, 24 anos depois

por Bento Araujo     19 dez 2014

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Tudo começou com uma cuspida em direção a um fã e terminou com seu último show no Pink Floyd. Décadas depois da modesta excursão de 23 shows promovendo o disco que ainda atormenta seu criador, Roger Waters não tem medo de trazer de volta aos palcos o gigante adormecido.

“Esse show custou uma fortuna na época, por isso não foi possível levar o lance muito adiante”, comenta Waters hoje em dia. “A tecnologia é muito mais barata agora, mas em 1980 era diferente. Os tijolos e o muro seriam muito fáceis de serem construídos hoje. Eles eram de papelão, mas eram bem pesados. Apesar de tudo, creio que aqueles 23 shows foram o bastante. A banda estava exausta, não nos falávamos mais e não ficávamos mais no mesmo camarim no backstage. Rick Wright não estava mais na banda, mas estava tocando naquela tour, então foi tudo muito bizarro, deu o que tinha que dar.”

No dia 6 de julho de 1977 o Pink Floyd fazia seu derradeiro concerto da excursão Animals In The Flesh no Estádio Olímpico de Montreal, promovendo seu disco Animals. O estádio era gigantesco e deixava o grupo distante da plateia. Na solidão do imenso palco, David Gilmour não voltou para o bis e preferiu assistir tudo da mesa de som, postada bem no centro do estádio. Roger Waters não gostou nada daquilo e descontou sua raiva cuspindo num fã da primeira fileira. Para o baixista, aquele tipo de audiência “estava mais interessada em gritar, fazer bagunça e atirar coisas uns nos outros.”

Nick Mason tem uma explicação na ponta da língua: “Roger não é exatamente um sujeito ‘paz e amor’. Aqueles nossos shows em grandes estádios eram estranhos. A gente tocava e prestava muita atenção na plateia, assim como eles prestavam atenção na banda, e nas primeiras fileiras estavam os fãs mais malucos, que lutaram pra ficar ali, praticavam ‘air guitar’ e cantavam todas as músicas letra por letra. Alguns desses caras passavam o dia todo ali e quando a banda entrava no palco eles simplesmente enlouqueciam.”

Foi tocando nesses grandes espaços construídos não para receber um show de rock, mas sim eventos esportivos como as Olimpíadas, que Waters teve a ideia de seu próximo trabalho de estúdio. Para ele esporte era como uma guerra, e essa frustração de ter que se submeter a apresentar sua música naquele tipo de lugar foi a força motriz para a concepção de The Wall, um projeto ultra-ambicioso que envolveu um disco duplo, uma turnê e um longa-metragem.

O disco foi um sucesso, e o filme também, mas o que causou mais espanto certamente foi a excursão. Era preciso intimidar aquele tipo de público que “grita e atira coisas” como dizia Waters. O “conceito The Wall” significava antes de mais nada fazer o público refletir da melhor forma, levando uma dura, uma lição de realidade que faria todo mundo voltar pra casa não só refletindo, mas sim completamente puto da vida.

wall80“Vamos construir um muro entre a banda e o público”, ordenou Waters, num ato que expressava toda sua frustração: “Era um jeito de mostrar todo o meu descontentamento perante aquelas pessoas que se diziam “fãs” do grupo, porém se comportavam de maneira errática e desrespeitosa durante os shows, o que somente mostrava que não eram fãs coisa nenhuma. O muro nos deixou alienados; tentamos criar algo teatral e com certeza nos tornamos um teatro e não uma banda.”

Na cabeça de Waters, The Wall antes de tudo foi algo pra ser experimentado ao vivo. Antes do roteiro e do álbum, a concepção era chocar as pessoas ao vivo, um tapa na cara do fã. A força visual de um muro tomando toda a frente do palco, com a banda tocando atrás dessa muralha, era um espetáculo de pura alienação.

Foi especulado então que algumas arenas ao redor do mundo poderiam não suportar a imensa dimensão do palco e do muro, e numa atitude “Spinal Tap puro”, a banda decidiu que iria montar sua “arena portátil”, algo como um circo de última geração, que poderia viajar o mundo e acomodar todo o palco da tour. Claro que a “genial” ideia foi logo abandonada. Evitando mais cusparadas e grandes estádios, Waters preferiu centralizar o novo show em arenas fechadas e em apenas quatro grandes cidades, realizando uma série de apresentações em cada uma delas: Los Angeles, Nova Iorque, Londres e Dortmund.

Todas as 23 apresentações tiveram seus ingressos esgotados, e o grupo recebeu muitas ofertas para levar o espetáculo a outras cidades. Um promotor da Filadélfia inclusive ofereceu dois milhões de dólares a Waters para dois shows no JFK Stadium, onde anos mais tarde seria realizado o Live Aid. Fiel aos seus princípios e ao intuito original do show, Waters negou, mesmo estando quebrado de grana, pois seus fundos foram todos aplicados na caríssima produção do show. Ele estava mesmo determinado a nunca mais tocar em estádios com o Floyd. A banda cogita se apresentar sem ele, com Andy Bown no baixo durante todo o show, mas é claro que a ideia absurda é abandonada na sequência.

O muro gigantesco, que ia sendo construído enquanto a banda tocava, “fazia qualquer show do Kiss parecer mais um show do Ramones”, como disse um crítico do Melody Maker. Sylvie Simmons do Sounds escreveu: “É tudo tão grandioso, inteligente e bem montado que faz qualquer show do Alice Cooper parecer um evento de uma modesta loja de brinquedos.”

16964.pngAlém do Floyd (Roger Waters, David Gilmour, Richard Wright e Nick Mason) uma banda de apoio (batizada como “Surrogate Band”) também participou da turnê, e trazia o guitarrista Snowy White, o baixista Andy Bown, o baterista Willie Wilson e o tecladista Peter Wood. Enquanto o protagonista do show (Pink, ou seja, Waters) encarnava seu alter ego fascista psicótico, a “surrogate band” atacava de “In The Flesh”, usando máscaras com os rostos dos quatro integrantes originais do Floyd. A presença de Bown deixava Waters livre da obrigação de ter que tocar seu baixo, assim ele poderia “atuar” à vontade. Essa banda de apoio permanecia durante todo o show, tocando depois ao lado de Gilmour, Wright e Mason.

Waters na época ressaltou que isso foi absolutamente necessário, já que Mason e Wright não estavam “tocando bem o suficiente.” Wright estava inclusive oficialmente fora do grupo, pois havia sido demitido por Waters, que o excluiu também da “parceria dos negócios”, o que significava que ele era apenas um músico assalariado, recebendo o mesmo que qualquer outro músico da “banda de apoio”. Por mais bizarro que isso possa soar, essa delicada situação fez bem aos bolsos de Wright, pois ele foi o único dos quatro membros originais do Floyd que terminou a excursão com alguma grana no banco; os outros três perderam seus fundos na gigantesca produção do show. Mesmo existindo um atrito interno dentro do grupo, Andy Bown constatou que a banda fazia questão de não transparecer tal crise: “Eles estavam atravessando uma fase difícil com Rick principalmente, mas a diferença do Floyd com todas as outras bandas que eu trabalhei é que eles são indivíduos extremamente educados e inteligentes, que acima de tudo sabem como se comportar. Ninguém fora do círculo deles poderia dizer que estavam em atrito.” Todo mundo também esperava se deparar com um grupo afundado em drogas pesadas, como relatou Gary Yudman, comediante e ator do Saturday Night Live que participou dos shows: “Eu esperava encontrar os caras chapados, com drogas por todos os lados no backstage, mas nada disso…

Acabei me deparando com Nick e Rick no lobby do hotel comendo sanduíche de queijo com os roadies após cada show, como um gentlemen inglês típico. Também fui introduzido ao sushi naquela tour, já que eles tinham um chef de cozinha no backstage. ‘Que porra é essa’ eu perguntei, e David me disse: ‘É sushi Gary, você deve experimentar, pois vai te dar muita energia.”

Principalmente hoje, aquilo foi um exagero sem precedentes: 45 toneladas de equipamento, 45.000 watts de P.A., 106 decibéis emitidos por um sistema quadrafônico, 106 roadies, 340 tijojos de papelão, torres hidráulicas, pirotecnia, explosões, um avião de guerra, o porco e mais outros bonecos gigantes infláveis, projeções e o imponente círculo de luzes tradicional do grupo no fundo do palco.

David Gilmour foi eleito como diretor musical do novo show, o que lhe causou muita dor de cabeça. O guitarrista tinha como obrigação coordenar centenas de detalhes, deixando Waters mais concentrado para sua performance de protagonista de toda a história. Nos primeiros shows, Gilmour tocava com uma imensa lista de deveres colada em seus amplificadores. Nada poderia passar, caso contrário um acidente poderia acontecer: “Nas excursões anteriores haviam momentos onde a gente poderia improvisar, estender ou encurtar os temas um pouco mais. Havia essa liberdade. Já nos shows do The Wall era bem diferente, tínhamos que seguir um roteiro, o que não deixava espaço algum para qualquer improvisação. Apenas durante o meu solo de ‘Confortably Numb’ eu podia esquecer tudo e apenas tocar”, relatou Gilmour. Esse instante inclusive era um dos pontos altos de cada apresentação, quando o guitarrista subia no topo do muro e fazia seu mais legendário solo em sua famosa Stratocaster preta.

Bob Ezrin, coprodutor do disco, esteve presente num dos shows em Nova Iorque e foi às lágrimas exatamente nesse instante… Ezrin foi banido por Waters de entrar no backstage, pois havia contado “detalhes secretos” do show a um amigo que publicou o papo na Billboard. Persona non grata, o produtor pagou ingresso, levou sua família e conseguiu acessar o backstage, pois os seguranças trabalhavam também com o Kiss e portanto o conheciam de longa data. Waters ficou sabendo da presença “do traidor” e portanto se trancou no camarim. Ezrin: “Assistir aquele show foi uma das maiores experiências da minha vida. Era a realização física de toda aquela ideia maluca, que foi milagrosamente colocada em prática. Foi perfeito, o melhor show de rock que eu vi na vida.”

A turnê começou em 7 de fevereiro de 1980, no Sports Arena de Los Angeles, defronte a 16.000 espectadores. Logo no primeiro show da turnê tudo quase acaba em tragédia. Durante os primeiros instantes do show, um efeito pirotécnico tem um mal funcionamento e inicia um pequeno incêndio no palco. Waters tenta continuar como se nada estivesse acontecendo enquanto roadies tentam apagar a chama com extintores. Quando a fumaça começa a tomar conta do Sports Arena, Waters interrompe o show e avisa que devido a um problema técnico a banda vai dar um break e voltar em cinco minutos. Algumas pessoas abandonaram seus assentos e correram em pânico para a saída de emergência do ginásio, outros mais chapadões curtiram de montão o lance, imaginando que todo aquele agito nada mais era do que parte do show.

A apresentação continuou, com o muro sendo construído durante a apresentação. A primeira metade do show acaba com “Goodbye Cruel World” e o último tijolo é colocado no muro enquanto Waters canta a última frase.

O que vai acontecer agora? Todo mundo faz a mesma pergunta durante o intervalo de 20 minutos. Na volta o grupo toca por detrás do muro, uma situação atípica tanto para os músicos como para o público. Em “Nobody Home”, um tijolo se abre para mostrar Waters num quarto de motel.

floyd80eNo final da apresentação o muro cai, com explosões, gelo seco, um jogo de luzes alucinante e um barulho ensurdecedor rugindo das torres de som. Até mesmo para o público de Los Angeles, acostumado a muitos terremotos, aquilo era tremendamente assustador. Alguns tijolos caíam sobre a plateia. Já a banda tocava dentro de jaulas, que protegiam os músicos de serem atingidos por algum tijolo enquanto se apresentavam atrás do muro que ruía. No encerramento, o Floyd e sua banda de apoio apareciam tocando sobre os escombros a canção “Outside The Wall”, com todo mundo utilizando instrumentos acústicos. Segundo Waters era uma maneira de “terminar o espetáculo com uma dose vital de contato humano.”

Depois dos sete shows em Los Angeles a banda rumou para Nova Iorque, onde se apresentou por cinco noites no Nassau Veterans Memorial Coliseum, com capacidade para 12.000 pessoas. Em agosto de 1980, banda e toda a parafernália atravessam o Atlântico para uma série de seis apresentações no Earls Court de Londres, com capacidade para 19.500 pessoas. Todos os shows de Nova Iorque e Londres são filmados profissionalmente para um futuro filme, mas são descartados. Durante o penúltimo show londrino, Waters deu um jeito de atacar o jornalista Allan Jones durante a introdução de “Run Like Hell”, dizendo que Jones não passava de um “sujeito de merda”. Jones havia escrito uma resenha sobre o show do dia anterior no Melody Maker, escrevendo que “era difícil lidar com tamanha babaquice daquele espetáculo.”

Após a maratona britânica a banda tirou seis meses de férias e no dia 13 de fevereiro de 1981 voltou a se reunir para mais oito apresentações no Westfalenhalle, em Dortmund, Alemanha Ocidental. Andy Roberts, guitarrista da banda de Roy Harper, substituiu Snowy White, que nessa altura estava tocando no Thin Lizzy. Ingressos para cada um dos shows foram disponibilizados em diferentes países da Europa, então os fãs viajavam de trem para assistir a banda na Alemanha, pois era impossível excursionar com todo aquele aparato e pessoal: os prejuízos seriam ainda maiores do que já vinham sendo. Andy Roberts: “A gente costumava brincar antes dos shows, dizendo: ‘Onde tocaremos hoje à noite? Espanha e Portugal? Ótimo!’ Isso dava uma atmosfera diferente a cada apresentação e certamente influenciava a maneira de como a equipe derrubava o mudo a cada noite. Se o público tivesse sido mais agitado e barulhento naquela noite, o muro caía com mais vigor e violência do que normalmente.”

Na Alemanha, Roger ficou num hotel com sua esposa e filhos e David, Rick e Nick ficaram em outro. Tudo era engendrado para que eles só trocassem algum olhar em cima do palco. No backstage cada integrante tinha seu trailer, sendo que nenhum ficava de frente ao outro, assim cada um deles poderia seguir tranquilo rumo à escadaria do palco.

Num dos shows em Dortmund estava presente o diretor de cinema Alan Parker, que filmaria o longa metragem The Wall nos meses seguintes. Para captar a banda apropriadamente no palco, Parker convence o grupo a realizar mais seis apresentações no Earls Court, em Londres, agendadas para junho de 1981. Fãs ficaram furiosos, principalmente com a iluminação extra da equipe de filmagem.

No dia 17 de agosto o Pink Floyd apresenta The Wall pela última vez, e esse foi também o último show de Roger Waters com o grupo até a tímida reunião no Live 8, 24 anos depois. O baixista chegou a repetir o show por conta própria em Berlim, logo após a queda do muro em 1991, e atualmente está excursionando o show com muito sucesso pela Inglaterra e Estados Unidos.

Depois de tanto tempo e tanta confusão, é Waters que dá a palavra final sobre o inesquecível show de The Wall de 1980: “Os outros caras da banda não tinham nenhuma relação com esse show; eles gostam de declarar que estiveram envolvidos na concepção do lance, mas na verdade não estiveram. Se você pegar o programa original daquela turnê está escrito ‘The Wall, escrito e dirigido por Roger Waters; executado pelo Pink Floyd’, e foi exatamente isso…”

  1. Danilo Belfort

    Parabéns pelo excelente trabalho!

    Eu e meu namorado Celso Madruga (o Celso Silva Ferreira da banda Alma da Noite) simplesmente a-ma-mos Pink Floyd e principalmente o “The Wall”.

    Eu e ele ficamos muito felizes de sabermos maiores detalhes sobre essa turnê maravilhosa, que eu e meu gato humildemente tivemos a oportunidade de ver quando o grande Roger Waters voltou ao Brasil.

    O texto de vocês nos deixou arrepiados, no melhor dos sentidos.

    Continuem sempre assim, amigos do Poeira Zine!

    Abraços Fraternos,
    Danilo Belfort e Celso Madruga

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